🎶 Desconstrução, por Chica Boate
Maquiou seu rosto como se fosse lógico / Subiu ao seu redor uma barreira flácida / Sentou e trabalhou como se fosse número
Ao final de dez dias cuidando de uma pessoa acometida pelo Covid e depois eu mesma contraindo o vírus - não tive nenhum sintoma além de um cansaço sem fim e uma nuvem de dor de cabeça que me impediu de pensar coerentemente por dias, mas vou voltando aos poucos (já testei negativo, mas ainda estou me recuperando do “olé”)-, precisei focar nas entregas da faculdade, etc. Os prazos estão todos bagunçados por aqui.
Desde sexta-feira parece que voltei a vida. Talvez seja porque vi a aurora boreal da janela de casa, talvez seja a doença da década saindo do meu corpo, não sei. Mas agora estou trabalhando em outros textos - um de ficção, que deve sair num livro em breve (conto para vocês aqui quando puder) e um de não-ficção - e não trabalhei em nenhum texto reflexivo para newsletter hoje. Mas tenho aqui um pedacinho de um projeto despretencioso para mostrar.
Há mais ou menos dez anos, eu venho escrevendo paródias de várias composições do Chico Buarque. Criei uma personagem chamada Chica Boate para performar essas canções no meu imaginário.
Não é uma obra que vou publicar nem nada, é só um exercício criativo que gosto de fazer de tempos em tempos.
Então, hoje trago uma dessas para vocês. Fiquem aqui com Desconstrução. 🎶
Desconstrução
por Chica Boate
Desejou daquela vez como se fosse rápida
Maquiou seu rosto como se fosse clássico
Na boca um batom de vermelho patético
Saiu andando com um sorriso cínico
Ignorou assovios como se fosse máquina
Subiu ao seu redor uma barreira ótica
Decote e calça justa num conjunto trágico
Seus olhos borrados de lápis e lágrima
Sentou e esperou passar aquele bárbaro
Engoliu choro e tristeza como se fosse pântano
E chegou atrasada como se devesse álibi
Sentou e trabalhou como se fosse vítima
Escorregou do quinto andar e se partiu ávida
Aterrissou no ar como se fosse átomo
Borbulhou no chão como se fosse ácido
Compartilharam sua foto num perfil público
Partiu da solidão virando mais um número
Desejou daquela vez como se fosse sábado
Maquiou seu rosto como se fosse máquina
Escorregou o rímel e soltou um peso
Saiu andando com um sorriso clássico
Ignorou assovios como se fosse chique
Subiu ao seu redor uma barreira mágica
Decote e calça justa num conjunto bárbaro
Seus olhos borrados de preto lápis
Sentou e esperou passar aquele trágico
Engoliu choro e tristeza como se fosse ácido
E chegou atrasada como se devesse cínico
Sentou e trabalhou como se fosse algo
Escorregou do quinto andar e se partiu ao público
Aterrissou no ar como se fosse patética
Borbulhou no chão como se fosse ácido
Compartilharam sua foto num perfil falso
Partiu da solidão virando mais um pássaro
Desejou daquela vez como se fosse átomo
Maquiou seu rosto como se fosse lógico
Subiu ao seu redor uma barreira flácida
Sentou e trabalhou como se fosse número
Aterrissou no ar como se fosse última
Borbulhou no chão como se fosse bárbaro
Partiu da solidão virando mais um sábado
Pela cantada de graça, que a gente tem que ouvir
Pela lágrima e raiva, que a gente tem que esvair
Pelos bebês não planejados que a gente tem que parir
Deus lhe pague
Pela labuta certeira para nos explorar e despir
E pelas moças trabalhadeiras a nos poupar e servir
E pela promessa derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
Para saber mais
Tem muita matemática e muita técnica em letras de música; descontruir e construir algumas delas tem sido um passatempo ótimo. Sem contar que ajuda a entender melhor algumas estruturas literárias. Inclusive, se a gente puxar um pouco a mente para o passado, na história das histórias, veremos que a literatura nem sempre foi uma atividade solitária e silenciosa. Ela é mais conectada a música e a performance do que imaginamos.
Fica aqui um link preguiçoso para o artigo da Wikipedia que destrincha a letra original de Construção, a música do Chico que é tão bonita, tão poderosa e cheia de coração e técnica.
Jabás e recomendações
Recentemente li Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso. É daqueles livros para ler em uma sentada. Apesar dos temas espinhosos e difíceis, a leitura é muito prazerosa. Recomendo para quem sente falta de um livro que faz a gente querer ler tudo de uma vez. (É a leitura do mês do clube de leitura dos ouvintes do podcast Pistolando, o Pistolendo, organizado pelo amigo Elvis Rodrigues).
Ainda sobre música: no ano passado, o Incêndio na Escrivaninha conversou com a Márcia Fraguas, crítica e historiadora, em um bate-papo sobre a década de 1970, explorando conflitos entre produção musical e ditadura no Brasil. Tem disponível no Youtube, Spotify, site O Podcast É Delas e todos os tocadores de podcast.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Adorei a adaptação da música! Ficaria demais gravada!
Ficou muito legal!