Esses dias uma amiga contou nas redes sociais que comeu a própria placenta. Com cebolinha frita, uma delícia, ela disse. Consigo enxergá-la fazendo isso. É dessas mulheres capazes de tudo e sem vergonha de nada. Ela também é vegana e a beleza que há em comer a si própria e ainda sim continuar uma pessoa vegana é um paradoxo incrível.
Porque não é um paradoxo, veja bem. Quando eu era criança, eu não roía as unhas. Mas comia o cantinho dos dedos até chegar na carne viva, no suquinho de sangue, e aí chupava esse líquido com gosto de metal bem devagarinho, para que não estancasse rápido. Era uma mistura de adrenalina - eu não poderia ser pega por nenhum adulto, afinal, tomar sangue não parecia ser permitido - com autoconhecimento. Ia mordendo minha própria carne para saber até onde eu aguentava. Fiz algo parecido com o ferro de passar roupas; um dia coloquei meu dedo indicador no ferro quente, para saber como era a dor de queimadura. É bem ruim. O dia que decidi parar de comer carne - a minha e a dos outros (os animais, no caso) - foi numa lógica muito parecida com essa, inteiramente antropofágica. Eu tinha desenove anos e já tinha lido muitos livros sobre feminismo. Eu costumava enviar cópias digitalizadas desses livros por email para todo mundo que eu conhecia - observe que meu hábito de aparecer na caixa de entrada de email dos outros não vem de hoje. Um dia encontrei um panfleto sobre veganismo numa mochila suja e ao invés de simplesmente jogá-lo fora automaticamente, me detive na imagem de um filhote de macaco que ocupava um dos lados do papel. No verso, uma lista de razões para parar de comer carne; entre elas, o fato de que manter animais em cativeiro era um tipo de opressão à uma vida que não nos pertencia. E foi aí que o bicho pegou (com perdão do trocadilho). Se eu, como ser humano mulher, não aceitava ser oprimida nas muitas esferas de abuso em que o patriarcado me colocava, por que eu mesma seria cúmplice da opressão de outros seres vivos? Nunca mais comi um pedaço de carne (dos outros) na vida.
Mas esse texto não é sobre isso. É sobre o tal paradoxo. Estou agorinha me desafiando nesse tema, porque é um tema difícil. Mas na verdade, o que faço no espaço de 20 minutos que tenho para digitar esse texto, é o verdadeiro desafio. Vomitar para fora essas partes do meu corpo que não me descem. Os pedacinhos de vida se tornam palavras num pedacinho de papel, num processador de textos, e de mim sobra uma mulher que mesmo sem pedaços permanece sólida em convicções que se construíram na adolescência. Que tipo de adulto estabelece seu estilo de vida quando jovem? Gente louca.
Ano passado descobri que grande parte das loucuras podem ser agentes funcionais de manutenção do que foge ao status quo. Não é que eu tenha diploma em psicologia nem nada, eu sou formada das minhas experiências, e por isso mesmo minhas afirmações deveriam ser elevadas à checagem exaustiva de fontes fidedignas e pesquisas no google.
Mas olha, nem o google é confiável - pois é feito de gente. Consumido por gente. Sexta-feira fui ao posto tomar a terceira dose da vacina contra a covid 19. Fui lançada num cubículo com duas enfermeiras que me perguntaram a idade. 31, respondi. Entreguei meu cartão de identidade sueco e uma das enfermeiras falou algo para outra, com grande convicção. Não, não, ela não tem 31, ela vai fazer 31 daqui uns dias. Aí a outra enfermeira trocou de seringa, porque a vacina muda exatamente entre a idade de 30 e 31 anos completos. Eu respirei fundo e precisei fazer um pequeno esforço, frente à duas autoridades na minha frente, para afirmar: não! Eu tenho 31. Daqui uns dias terei 32. Eu sei a minha idade. Elas trocaram olhares significativos e então deram de ombros. Me deram a vacina correta e eu cheguei em casa feliz.
Feliz porque saber de si, não ter dúvidas sobre quem se é, exige um esforço. E muita prática. Imagina que ser imigrante eleva essas coisas a última potência, que esse diálogo maluco foi todo em sueco, uma língua em que na maior parte do tempo estou soando como uma idiota, as palavra se atropelam, os sons nunca saem como eu queria. Saber quem eu sou, de onde vim e quando surgi no mundo vira a cantilena das pequenas coisas.
Já vi pessoas tecendo comentários jocosos sobre essas mulheres que tem parto humanizado (o que implica em outros partos serem.. desumanizados?) e então comem as próprias placentas. Falam da placenta dos outros com nojo. Eu admiro minhas amigas que comem a si mesmas e afirmam em alto e bom som que o fazem. É como se os comentários fossem engolidos por elas antes de serem proferidos.
Pessoas, pessoas. Se a gente não consumir a si próprio, os outros nos engolem. E a gente nem percebe até restar só um pedacinho de carne molenga, sem vida, pendendo do dente de quem nos devorou.
Obs: esse texto é um exercício de escrita livre. “Escreva qualquer coisa, sem parar, por 20 minutos”. Fica aí uma dica de escrita que ninguém me pediu pra dar - e que nem eu sei se é boa ou não. Não sou professora de escrita.
Jabá
Essa semana a revista digital Querido Clássico publicou um dos meus muitos textos sobre o livro Duna, de Frank Herbert. Dessa vez vim dissertando sobre como Herbert retrata a masculinidade em Duque Leto e Paul Atreides no primeiro livro da série. Fica aqui um trechinho:
“Essas habilidades, no fim, funcionam só como mais um mecanismo de poder para continuar mantendo o status quo. As manobras políticas e militares de Paul culminam em uma ação épica de busca pelo poder: o heroísmo como mais um papel performático da masculinidade.”
O texto todo você encontra no artigo “Nas areias de Duna: a masculinidade nos Atreides“.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Amo muito o jeito que você escreve, parece que está sentada em uma nuvem, bêbada, tacando pedra em quem passa embaixo. Não faz sentido o que eu disse, mas o que é que faz sentido hoje em dia? Abraço.
Adorei a dica: “Escreva qualquer coisa, sem parar, por 20 minutos”. E " Se a gente não consumir a si próprio, os outros nos engolem. E a gente nem percebe até restar só um pedacinho de carne molenga, sem vida, pendendo do dente de quem nos devorou." Maravilhoso. Diz tudo sobre o momento que vivemos. 🙌🙌