3 coisas que aprendi com você 🐆
Lições da internet para a vida: especial de aniversário de 3 anos da newsletter
Eu sei que você sabe. A pior coisa sobre perder os dentes é ter a consciência de que falar é quase uma humilhação, uma humilhação avassaladora e de um tom bem irracional — talvez eu esteja arriscando um discurso desdentadofóbico —, mas que faz todo sentido na nossa cultura. Uma cultura que desdenha bocas desdentadas. Mas todo mundo passa por isso nos anos de alfabetização, quando nossos dentes de leite vão se perdendo de maneira irreparável para dar lugar aos dentes que teremos até morrer; é um processo impossível de ser evitado. Não é assustador ver essa mudança? Não fosse um acordo social silencioso de aceitação, muito anterior ao nosso nascimento, que perdoa a existência de crianças desdentadas, talvez o trauma fosse muito maior. Escrever na internet é como perder os dentes em ciclos intermináveis e é preciso contar com a generosidade dos adultos outros seres humanos para atravessar os períodos em que tudo parece desengonçado, falamos engraçado e os dentes permanentes começam a despontar do buraco deixado pelos dentes de leite.
Vou ser extremamente honesta; tomei um cansaço absurdo de textos sobre escrever. Não é culpa de ninguém em especial, eu que peguei justo esse tópico para ser minha obsessão na pandemia, junto com a treta de politeísmo versus monoteísmo no Antigo Egito. Para minha felicidade a treta egípcia não é tão discutida na internet e sigo firme e forte com ela, mas o assunto “escrita” se intensificou desde que eu comecei essa newsletter e agora eu estou aqui, segurando essa marimba, com cara de quem peidou surdo mas fedeu. A newsletter completou 3 anos e eu senti uma vontade louca de escrever sobre isso, mas sem querer escrever sobre escrever. Ou escrever sobre não querer escrever sobre escrever.
Tá, agora deu.
A questão é que quando subi aqui nesse palquinho em 2021, eu não sabia se alguém viria aqui me ver performar. Isso não me fez desistir, mas toda vez que uma cadeira foi ocupada aqui nesse grande teatro, muitas vezes eu me senti como uma criança desdentada.
E olhando esses três anos em retrospecto, eu percebo que aprendi uma coisa ou outra com vocês que me lêem. Por isso, nesse aniversário, eu quero contar quais foram esses três desses grandes aprendizados.
🐆 1. Tem coisas que é melhor não publicar.
Você já reparou na quantidade absurda de mulheres vestindo terninho ou blazer pelas redes sociais? Parece que quando alguém quer passar uma sensação de firmeza ou autoridade, o blazer se materializa no corpo da pessoa. Eu escrevi um texto inteiro sobre isso, se chama mulheres de terninho, e decidi que nunca publicarei aquilo. A pesquisa para o ensaio me levou até a história dos uniformes militares e me fez questionar toda a simbologia das roupas e a relação delas com trabalho e poder — para no fim eu me perguntar se criticar mulheres usando terninho era realmente algo útil para nós, mulheres, e se era algo que eu queria fazer. O texto ia ajudar ou atrapalhar? O texto poderia fazer alguem se sentir chateada ou perdida? Me fazendo esse tipo de pergunta e pensando com todo o carinho do mundo nas minhas leitoras e nas colegas escritoras, eu decidi que um texto desses não é o tipo de coisa que eu quero disseminar por aqui.
Não foi a primeira vez que desisti de publicar algo por motivos semelhantes. Nem tudo vale a pena ser publicado. Ter cuidado com as palavras parece algo óbvio entre escritores, mas não é tanto assim.
Quando termino um rascunho, eu sempre me pergunto se eu me mantive fiel a intenção do texto e se aquilo é realmente o tipo de mensagem que eu quero espalhar por aí. É uma lição aprendida aqui nesses três anos e que eu levo para vida pessoal, me perguntando sempre se minhas ações estão alinhadas com o que eu acredito. Esse tipo de pensamento tem sido como uma baliza no meu dia a dia e tem me feito sentir menos frustrada com a vida.
🐆 2. O direito de emitir opinião traz junto o dever de lidar com a consequência.
Todo mundo tem o direito de emitir opinião, de fato, mas raramente uma única pessoa vai deter a experiência única e final sobre qualquer coisa. Eu adoro a caixinha de comentários do texto e a possibilidade das pessoas me responderem diretamente por e-mail, assim chegam opiniões e experiências diferentes das minhas. Essa troca de mensagens é a parte mais divertida — mas às vezes a mais cruel — sobre expor opinião na internet. Claro que isso abre precedente para as pessoas projetarem coisas sobre a gente, mas eu sei que ser uma pessoa online é quase a mesma coisa do que ser um tipo de objeto na visão da maioria das pessoas e elas vão preencher as lacunas sobre sua vida e experiência do jeito que bem entenderem. E vão agir de acordo com a fantasia que criaram. Talvez essa seja a parte chata da coisa toda, mas aí também cabe a cada um de nós escolher o que levar para o travesseiro antes de dormir. Isso não é lavar as mãos para a responsabilidade do que se diz, mas reconhecer que somos pessoas com nossas angústias e preocupações próprias e é impossível atender as expectativas de todo mundo.
🐆 3. A vida é muito maior do que conseguimos enxergar.
Embora escrever seja uma das coisas mais importantes para mim, não é a única coisa da minha vida. Isso ajuda muito nos momentos de baixa, quando me sinto frustrada, pouco criativa, bloqueada, injustiçada ou simplesmente cansada. Mas eu entendo que a maioria das pessoas pensa que as coisas postadas na internet são as únicas coisas acontecendo na vida de alguém. Não são. Nisso, acho que vale lembrar daquela máxima “a gente nunca sabe o que está se passando na vida do outro”. Tanto pro bem quanto pro mal. Venho aprendendo aqui com essa publicação que deter o controle da narrativa é importante, mas igualmente importante é lembrar que isso aqui é só um vislumbre. A vida é muito maior do que esse pedacinho que as pessoas mostram online. Lembrar disso me faz bem.
Expediente
Eu estou de férias pelo Brasil, então aproveitei para participar de dois bate-papos ao vivo e a cores nas últimas semanas.
Teve o papo sobre mulheres latinas na literatura gótica, em São Paulo, com a Maria Carolina, da Encruzilinhas, e a Ana Rusche, da Anacronismos, na livraria Gato Sem Rabo — esse papo ficou gravado em vídeo e você pode ver tudo aqui:
E também teve um papo sobre o estado da literatura fantástica contemporânea, com a Irka Barrios, do Escuro Medo, e o Daniel Gruber, da editora O Grifo, em Porto Alegre. Foi ontem na livraria Clareira e aqui vocês tem um vislumbre do momento:
Satélite de recomendações
O catálogo de capistas da Seiva.
Pouca gente sabe, mas meu trabalho dos sonhos é ser a pessoa que dá nome para os esmaltes no Brasil. Aqui essa pessoa conta como é ter esse trabalho.
Esse vídeo do Dunker respondendo a espinhosa pergunta: é possível descolonizar o inconsciente?
Daqui uma ou duas semanas voltamos com a programação normal por aqui.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
🔭
em primeiro lugar, parabéns pelo aniversário da news! e que baita aprendizagem, hein! tenho sentimentos conflitantes sobre escrever sobre escrever. depende muito de quem e de como escreve. em alguns casos, sinto que a pessoa fica girando em círculos, escrevendo sempre o mesmo texto, mas com outras palavras. gosto mais quando são edições pontuais e que falam sobre os processos do autor, em vez de uma cagação de regras. concordo com você que a gente deve segurar a marimba depois de escrever um texto, mas sem perder de vista que a recepção de um texto escapa ao controle de quem escreve. o autor é responsável pelo que ele escreve, não pelas interpretações (e menos ainda pelas extrapolações). vida longa à news! 👏👏👏
Oi Vanessa! Sobre roupas e mulheres, não sei se você conhece a Thais Farage, ela tem um livro chamado "Mulher, roupa, trabalho: Como se veste a desigualdade de gênero" e, uma news aqui no substack (https://thaisfarage.substack.com/). Talvez o conteúdo dela possa te ajudar com esses pensamentos sobre o terninho e blazer ;)