Esse hábito horrível de pegar o celular de manhã, assim que se abre os olhos, ainda vai nos matar. Não uma morte súbita, bruta, de assassinato tradicional. Mas uma morte bem lenta, que começa entrando pelo olho como um alfinete e caminha preguiçosa como uma larva de bicho geográfico lá para dentro do cérebro.
Hoje eu acordei olhando para uma pequena poça de palavras estáticas (era o Twitter) e me perguntei o que de tão importante eu tinha visto lá ontem. O que era tão importante que me fazia repetir o hábito todas as manhãs de novo, de novo, de novo e de novo. Eu não lembrava. Não sabia mais o que correu pelos meus olhos ali ontem, anteontem e menos ainda semana passada. Talvez 25 quilômetros de tela.
E eu nem senti.
Alguém vem roubando minha vida e eu nem sei quem é. As horas me escapam em uma ruminação intermitente e às vezes tenho a sensação bizarra de que tudo, tudo tudo tudo, é importante. Os dentes, a boca, a sanidade, as unhas… As unhas! Já percebeu? Tudo vira motivo para mostrar, em uma imensa casualidade falsa, uma unha bonita. Perceba. Parece que enfiam-se os dedos meticulosamente em frente às câmeras. Por que? Quando foi que as unhas viraram o foco sem ser o foco? Talvez seja o último limiar de controle sobre os corpos.
Se contassem para meu passado de internet discada que a conexão web moraria em meu bolso, acessível por toda parte, por uma tecnologia invisível aos olhos, eu pensaria que finalmente a humanidade estaria transcendendo os impedimentos do aprendizado, da inteligência e da comunicação. Seríamos pessoas melhores em um futuro logo ali.
Hoje me peguei desejando que as coisas fossem tão raras e preciosas quanto antes. Que a escassez de comunicação fosse uma realidade novamente. Um desejo estranho de limitação, quase um fetiche, uma vontade imensa de ter internet apenas sábado e domingo. Um delírio hipócrita e egoísta, claro.
Sabe o que é engraçado? Que não há nada me impedindo.
E assim como quem descobre uma nova invenção genial, eu fechei os olhos por um momento. Então olhei para a janela e mirei o sol lá fora. Fingi que as telas tinham sumido do mundo em um segundo mágico.
O milagre da internet permaneceu no Mozart tocando sem parar no fone de ouvido.
Streaming de música. Glória.
A saudade da internet discada foi embora como um passe de mágica.
Quantos quilômetros rolamos de tela por dia?
Não, eu não sofro de FOMO e tampouco fico olhando as redes sociais assim que acordo, mas tive minhas fases. Quando escrevi essas palavras, fiquei matutando com aquela ideia de ter lido 25 km de tela durante um dia. É claro que eu não era a primeira pessoa a pensar nisso.
Há dois anos, o jornalista de tecnologia Hussein Kesvani se fez a mesma pergunta (descobri procurando no Google por malucos como eu, que se perguntavam esse tipo e coisa). Ele escreveu o artigo I figured out how far I scrolled in a year, and now I hate myself (“Descobri o quanto de tela eu deslizei em um ano e agora eu me odeio”), em que confessa que deslizou o dedo por 32 km ao longo de 1 ano (2019). Pesquisadores dizem que a média da maioria das pessoas é aproximadamente 8 km, se não forem heavy users das redes.
A média diária de scroll das pessoas é 22 metros.
Quanto quilômetros lemos em livros?
Procurei por um estudo parecido, mas que contasse quantos quilômetros eu poderia estar lendo em livros. Encontrei um blog gringo que se dispôs a fazer a conta. Achei interessante que o pessoal livreiro calculou a quilometragem linha a linha, não por página — o que faz todo o sentido, já que a gente lê diferente do jeito que deslizamos a tela do celular no famoso doom scrolling.
A estimativa é que lemos mais ou menos 3 metros por página (há uma diferença entre ficção e não-ficção, pois elas geralmente não têm a mesma quantidade de palavras por página). Ou seja, com um livro de 200 páginas, nossos olhos percorrem mais ou menos 600 metros.
Satélite de recomendações
Série: Irma Vep
Minha mais nova obsessão é uma série da HBO, Irma Vep, que terminou no último dia 25. É uma homenagem maluca ao cinema, que mostra um pouco dos bastidores sobre como filmes e séries são produzidos. Além de tudo, há muita problematização sobre as transformações da indústria, apropriação cultural, magia, relacionamentos abusivos; questões enormes que a série não tem vergonha de tratar (mesmo que não tenha solução final para nenhum deles). Estou obcecada mesmo. É uma metanarrativa, completamente posmodernista, uma história dentro de uma história, dentro de uma história… e a origem de tudo é o filme Les Vampires, de 1915.
Eu ando tão vidrada nesse roteiro que comecei a escrever um ensaio longo sobre a série. Aviso aqui quando sair! (Não, não vai ser um texto normal da newsletter, mas mandarei o link do site que vai publicar).
Podcast: Incêndio na Escrivaninha
Você já ouviu o Incêndio na Escrivaninha?
Estamos produzindo uma temporada nova (sim, eu faço parte do time de hosts) e essa semana me deu uma saudade do episódio “Minissaia, LSD e a Lua”, sobre os anos 1960, com a convidada historiadora Meg Ganciné (que faz nossa pós-produção). Esse episódio faz parte da temporada Zeitgeist, em que visitamos cada década do século 20, até a atual década do séculos 21, conversando com professores, escritores e historiadores sobre cada um dos períodos.
O Incêndio é uma realização minha, da Ana Rusche e do Thiago Ambrósio Lage.
Novidades
Em agosto vamos ter coisa nova por aqui.
Estou trabalhando em uma linha editorial sólida, com assuntos bem definidos e dias fixos para postagem.
A newsletter completa 1 ano em breve e eu espero que a jornada fique cada vez melhor: para mim e para vocês.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Ótimo texto, Vanessa - e com timing perfeito! Tenho pensado muito nas últimas semanas sobre o tempo que perco rolando a tela... e em como reverter um pouco dessa ansiedade algorítmica. (ainda não descobri, mas sigo tentando)
Txt perfeito pra hoje. Busco cada vez mais ficar off das redes. Fugir da tempestade de tudo, e ao mesmo tempo nada. É mais consumo de horas e tempo de produtividade do nosso dia. Sorte a minha que consigo me desligar total no início da manhã e fim da noite antes de dormir. Bom saber que não estou sozinha nessa.