Não, ninguém morreu. Só figurativamente.
Diz um famoso teórico francês chamado Roland Barthes que, em uma história escrita, quem fala é a palavra, não a pessoa. Isso é, a primeira exigência do ato da escrita é a impessoalidade. Para permitir que o texto seja uma performance artística, há de se ter uma certa desconexão com a voz que criamos para dar corpo à história. Assim, não somos nós, os autores, que estamos de fato executando o que narramos - é uma performance. É tudo símbolo. Um ato.
A partir desse ponto de vista, quando começamos a escrever, precisamos matar a pessoa que somos para nos tornar a voz que escreve.
Qual é o interesse do autor em escrever?
Grandes riscos trazem grandes recompensas. Num primeiro momento, eu acredito que a escrita é capaz de desenrolar coisas enroscadas dentro da gente. O nó na garganta, o desconforto, a lista é infinita e não precisa conter apenas emoções negativas. Às vezes a gente não precisa racionalizar tanto e uma ideia de história é só uma ideia de história mesmo. Mas é impossível ignorar que escrever é se fazer entender mais e melhor.
Porém, escrever é diferente de publicar. Para mim, a nitidez da morte do autor vem desse momento específico em que o texto não mais pertence a ele. Agora, é de quem o ler também. A partir desse ponto, outros significados são atribuídos a performance que a escrita atua. Falando de mim, em um modo muito pessoal (talvez até demais), é essa coleção de significados que vem dos outros que me interessa na maior parte do tempo. O leitor é esse outro - desconhecido, incógnito, anônimo, que depois da leitura, não tem como se desvencilhar dos significados que viu nela.
Quando escrevo, morro. E quando sou lida, ressuscito. Levanto e faço minha performance de novo e de novo e de novo. Às vezes sob os olhos de diferentes pessoas ao mesmo tempo. O texto publicado é um exército de clones.
Qual é o interesse do leitor no texto?
Enquanto autores morrem continuamente, leitores nascem e renascem o tempo todo.
Ler é entrar numa segunda consciência. O exercício da leitura é sentir e viver emoções e perigos em um espaço controlado, seguro. Experiência também é sabedoria. Ler é um jeito muito eficiente de aprender coisas novas em várias esferas da vida.
O interesse do leitor é viver.
A quem interessa a morte do autor?
A morte do autor serve ao leitor.
Uma das coisas que o Barthes problematiza é que limitar o significado da obra apenas às experiências da vida do artista é reduzir a performance, limitar o significado.
Os exemplos próximos que temos disso é o caso de obras que mudam seu valor e interpretação à medida que os anos passam. Isso não é, de modo algum, dizer que as experiências de vida do autor em nada influenciam o texto; é óbvio que sim. Mas não podemos fixá-las como a única possibilidade de interpretação de um texto.
“Uma vez afastado o Autor, a pretensão de ‘decifrar’ um texto se torna totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura.”
Roland Barthes no ensaio A morte do autor
*Texto originalmentre publicado no meu fanzine Loucura Funcional. Você pode baixar o fanzine em formato pdf no final da edição Corpo Diferente (agosto de 2021).
A oficina de escrita para newsletters literárias, Da ideia ao ensaio, está com vagas abertas para uma turma sábado dia 25 de maio. Tudo pelo zoom e com material de apoio trazendo ideias para você usar na sua newsletter.
A oficina será gravada e disponibilizada aos participantes uma semana depois.
📡 Satélite de recomendações
Hoje a lista é curta, mas temática.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Quando li "A quem interessa a morte do autor?" Juro que me veio um nome, talvez dois, em mente :)
o texto só não pode cometer o pecado de matar o leitor de tédio…