A monarquia de hoje é um fetiche coletivo. Não fossem os desenhos da Disney ou os livros, filmes e séries (e tablóides) sobre a realeza, as pessoas sentiriam tanto tesão pela existência de reis, rainhas, príncipes e princesas? Essa adoração irracional pela rainha Elizabeth II, ou pela princesa Diana, é um treino cultural que prova o poder da mídia de massa. O fetiche da monarquia britânica permanece incrustado no mundo como um legado tão forte quanto a língua inglesa. E nós, pessoas brasileiras, crescemos consumindo narrativas ficcionais e midiáticas vindas diretamente dessa fonte.
Somos educados pelos seus valores quase no mesmo nível de exposição que temos à nossa cultura local. Isso se repete pelo mundo todo. Não é à toa que muitas narrativas desse povo imperialista são consideradas o cânone universal até hoje, como referências culturais absolutas.
Ser ou não ser, eis a questão.
Um grande exemplo é a história de Hamlet, tragédia de Shakespeare, de onde vem a famosa frase “to be or not to be, that is the question”. A própria história se passa entre a realeza da Dinamarca, ainda que tenha sido escrita por um inglês, expondo o lado sujo dos personagens numa busca louca pelo poder e pela vingança — dando o clima para gente cair nos encantos de Game of Thrones cinco séculos depois (GoT é um fenômeno mundial também porque a Europa medieval anglófona faz parte desse fetiche coletivo). Hamlet é considerada uma das maiores obras-primas da literatura universal.
Isso me leva ao relato da antropóloga Laura Bohannan no ensaio Shakespeare na selva. Apoiada na ideia de que Hamlet é uma narrativa de valores universais, Laura passa pela experiência de contar essa história para os nativos do povo Tiv, um grupo étnico da região da Nigéria com quem ela viveu por um tempo. Ao contar a história de Hamlet para pessoas que nunca tiveram contato com o cânone, ela passa por vários perrengues ao tentar explicar conceitos simples da narrativa. Veja esse trecho:
Minha audiência parecia tão confusa quanto eu. “Era o finado pai de Hamlet, algo que nós chamamos de ghost.” Tive que usar a palavra fantasma em inglês pois, ao contrário de inúmeras tribos vizinhas, aquele povo não acreditava na sobrevivência de nenhuma parte individualizada da pessoa depois da morte.
“O que é ghost? Um agouro?”
“Não, ghost é alguém que já morreu mas que fica vagando pelo mundo e pode falar; as pessoas podem ouvi-lo e vê-lo, mas não podem tocá-lo.”
Eles protestaram. “Pode-se tocar os zumbis.”
“Não, não! Não era um cadáver que os feiticeiros tivessem animado para sacrificar e comer. Não foi ninguém que fez o finado pai de Hamlet andar. Ele podia andar.”
“Mortos não podem andar,” objetou a audiência em uníssono.
Eu já estava querendo contemporizar. “Ghost é a sombra do morto.”
Eles protestaram novamente. “Os mortos não lançam sombras.”
“No meu país sim,” retruquei com impertinência.
(Trecho de Shakespeare na selva. 1966. Tradução de Lilian Valle, 1996)
Mais além no texto, Laura vai percebendo que, na lógica dos Tiv, a história de Hamlet não teria se desenrolado como a conhecemos. A loucura de Hamlet não existiria naquele contexto social.
A interpretação dos Tiv desqualifica a ideia de que a tragédia de Hamlet é “de valor universal” para a humanidade. Para fins de análise geral, o texto traz uma reflexão importante. Ainda sim, não expande a discussão, como se o caso fosse apenas uma curiosidade.
Mas o impacto dessa dominância cultural europeia é mais debatido hoje, quase 60 anos após o ensaio de Bohannan.
Meus amigos mais viciados em histórias de fantasia e ficção científica costumam usar o termo lore para definir o conjunto de características de um universo ficcional qualquer (pode ser um jogo, um livro, um filme, tanto faz). O lore do universo apresenta aspectos fundamentais que vão caracterizar esse mundo novo com cores, tradições, criaturas, história e valores.
Pensemos fácil. Senhor dos Anéis, Game of Thrones, O Mágico de Oz, Nárnia. Star Wars, Duna, Doctor Who, Star Trek, Guardiões da Galáxia. Cada um desses universos tem um lore e muitos deles repetem padrões de caracterização entre si.
Nunca escrevemos e consumimos tantas histórias novas quanto hoje em dia. Mas há uma sensação geral de saturação narrativa. Ela vem exatamente de uma grande ressaca da dominância das narrativas europeias e da fetichização de histórias de reis, rainhas e espadinhas que originam lores muito parecidos entre si.
Assim, os gêneros literários mais afetados pelo imperialismo parecem ser, a grosso modo, a fantasia e a ficção científica. Exatamente aqueles que mais mexem com a nossa imaginação.
Mais do mesmo.
Não foram apenas as histórias da cultura eurocêntrica que abocanharam o nosso imaginário. Mas o jeito deles de contar histórias também se estabeleceu como um padrão.
Semana passada falei sobre ficção científica latino-americana em uma conferência internacional (porém americana 🥲), a Worldcon, que acontece desde 1939. Na mesa de debate estávamos eu, a também brasileira Iana, o chileno Leonardo Espinoza Benavides e a cubana-americana Valerie Valdes, que fazia a mediação. Conversamos na qualidade de escritores latinos, mas a conversa foi em inglês: nosso público era internacional e a intenção era mostrar para essa platéia gringa como está a produção de ficção científica na América Latina hoje.
Um dos assuntos comentados no final da mesa foi a dificuldade de termos histórias aceitas nas revistas de ficção anglófonas. No mundo da ficção especulativa, é comum que escritores comecem publicando contos em antologias e revistas. Assim dá para começar a criar público e aprender os passos para publicar profissionalmente. No mundo da ficção em inglês, essas revistas são projetos bem estabelecidos e com um público enorme. Para autores latinos, publicar lá fora é importante para visibilidade, reconhecimento, recepção e experiência (e porque paga-se em dólar). Mas na hora de submeter textos para avaliação, muitas vezes os trabalhos latinos não são aceitos porque trazem foco narrativo ou estrutura da história diferentes dos formatos que os gringos estão acostumados a ler.
Chegamos a conclusão de que eles geralmente querem apenas um lore diferente. Querem nossas mitologias, nossos monstros e lendas, desde que a estrutura narrativa conhecida seja mantida — o famoso início, meio e fim, ou o desgastado modelo de jornada do herói, por exemplo.
Ou seja, o fantasma do imperialismo segue nos assombrando mesmo no mundo pós-colônia.
Para um panorama mais aprofundado sobre a Worldcon, leia a newsletter da Ana sobre o evento.
The queen is dead.
Desce uma pá de terra sobre o corpo da rainha Elizabeth II hoje. Os povos das ex-colônias vibram. A comemoração é autêntica, mas agridoce. A velha morreu aos 96 anos sem que ela, ou a família, pague por nenhum crime cometido ou financiado pelo seu reinado. Muita gente segue no fetiche. Lambendo a bota da defunta e batendo palmas para o novo rei.
Mas morre com ela também um símbolo poderoso. A Lu Nepomuceno fala, na última edição do Garrafinhas da Lu, de um luto que não é luto. “Mas é meio o arremate do mundo em que me fiz e que me fez. Meus sonhos, medos, utopias, formas de lutar e amar foram forjados por e em um mundo que já não há.”
Um mundo que já não há. E qual é o mundo que há agora?
O imperialismo britânico desmorona em torno de si. Na falta de outros territórios para parasitar, degradam-se a si mesmos, criam um Brexit e matam-se de fome. Não apenas uma fome literal, de empobrecimento material, mas uma fome metafórica e criativa. O mundo anglófono em si está em crise há tempos. Em séries de streaming de sucesso, roteiristas anglófonos escrevem usando o lore de outras nações para criar histórias que os gringos entendem. O imperialismo morre, mas seu fantasma vai nos assombrar por muito tempo ainda.
Há de se queimar um palo santo e defumar esse lugar.
🚀 Para fugir do imperialismo
Quer começar uma revolução? Descolonizar suas leituras?
Ficção científica brasileira contemporânea
Aqui fiz uma lista muito sucinta para quem quer começar a se aventurar no trabalho incrível que os autores brasileiros contemporâneos andam fazendo. Mas tem muito mais de onde esses aqui vieram. Fiquem de olho.
Eita! Magazine
Uma revista nacional e bilíngue (inglês e português) de ficção especulativa. A última edição teve o tema Comida.
Apoie a Eita! (Sim, eu sou uma das editoras hehe). Veja aqui as 3 edições publicadas.
Escambau
O coletivo Escambau publica autores nacionais de ficção científica, fantasia e afins em várias frentes. Quem apoia regularmente pode fazer parte de um projeto de formação de escritores. Confere lá.
Editora Dame Blanche
Uma editora brasileira de ficção especulativa, inteiramente digital. O catálogo está aqui.
Editora Plutão
Com autores nacionais e internacionais, a Plutão é uma das minhas favoritas de ficção científica. Olha essa lista!
Vocês gostariam de dicas mais específicas e detalhadas de obras de ficção especulativa por aqui? Resenhas, sugestões etc? Quer saber mais sobre o mundo da literatura? Me conta mais nos comentários.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Tenho refletido demais sobre isso de estruturas narrativas, e em como as nossas talvez ainda nem tenham sido sistematizadas/catalogadas... adorei te ler!
viva a pá por cima da rainha - ainda que nos falte tanto pra enterrar tudo isso!
amei o texto, vou espalhar pros fãs de SW, eheh