Com o braço esquerdo, nesse exato momento, eu seguro um bebê de 16 dias de vida que soluça chateado. Com a mão direita, digito esse texto. Ser tia é uma experiência curiosa.
Hoje eu não vou pedir perdão pelos garranchos, nem pelos erros de digitação. Vocês que lutem.
Como os nossos pais
Converso com meus amigos aqui no Brasil e uma coisa em comum surge em quase todos os papos: muitas pessoas da minha faixa etária (nascidos entre 1985 e 1995) deixaram de falar com os pais. Especificamente com o pai. O motivo mais comum nasce das divergências políticas, mas observo que muita coisa vem de uma certa incapacidade dos pais de se comunicarem. Não apenas com os filhos, mas com o mundo. Há uma sensação de que esses pais são adultos disfuncionais (possíveis neurodivergentes que se negam a ir atrás de ajuda, narcóticos, alcoólicos, violentos ou ausentes).
A maioria desses pais nasceram e cresceram em um Brasil de ditadura. Se não um pouco antes dela, com certeza no seu ápice. Embora muitos deles nem fizessem ideia de que viviam em uma ditadura, presumo que a relação deles com o mundo se estabeleceu em um Brasil de silêncio. Mas também de sobrevivência e vigilância, onde a fome e o conservadorismo atravessavam o cotidiano em conjunto, em níveis que nós, jovens, mesmo no estado atual das coisas, só podemos especular. Claro que ninguém passou por esse período ileso.
“A fome é nossa maior endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. [...] Os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer”.
Clarice Lispector, Daqui vinte e cinco anos, na sua coluna para o Jornal do Brasil em 16 de setembro de 1967.
Penso no Brasil como um país que tenta construir-se aos trancos e barrancos desde sempre, tentando se encaixar no pensamento fixo da sua própria ideia de país. Assim como a ideia de paternidade e maternidade constrói-se de maneira raramente tranquila, sempre diferente para cada um, a maioria das pessoas ainda imagina que essa parentalidade vem pronta com a notícia da gravidez. Muitas vezes tentando se encaixar à força na ideia romantizada do que é ser pai e o que é ser mãe. O que leva essa idealização senão à frustração?
A romantização é sedutora, mas vazia de concretude. O Brasil não me parece exatamente um país; mas uma ideia romantizada de país. Como os nossos pais devem ter idealizado, ou recusado, a ideia da paternidade.
Por isso mesmo, o sentimento de abandono do brasileiro com relação ao resto do mundo não é gratuito. Estamos profundamente magoados com tudo. Mas a mágoa maior é uma grande autocrítica; como nação, como eleitores, como povo. Falhamos na nossa comunicação uns com os outros – entre as classes sociais, entre as categorias de trabalhadores. Falhamos em falar uns com os outros a mesma língua. Num país ex-colônia onde 200 milhões de pessoas falam o idioma de um povo tão minúsculo quanto o português, tão historicamente insignificante antes de toparem com esse pedaço de chão do outro lado do oceano, pergunto-me se essa “forçação de barra” não é simplesmente a única coisa que temos em comum entre todos os estados brasileiros. A crise de identidade é coletiva. Talvez a identidade brasileira seja isso. Um constante descontentamento consigo e com o mundo.
Como nossos pais não conseguem expressar emoções, negam-se a fazer terapia eagarram-se à ideia de que família é a coisa mais importante de tudo, sem nunca de fato entender as dinâmicas da sua própria, nós nos vemos forçados ao rompimento. Como se a ruptura fosse também uma manifestação de comunicação; da lógica da violência, uma das mais tristes.
Não é como se ninguém tentasse de tudo antes de romper. Eu sei.
A nossa geração parece uma entressafra desengonçada. Tentamos nos desvencilhar das velhas ideias, mas para isso precisamos da geração anterior para seguir em frente. Com a falta de comunicação, preferimos deixá-los para trás. Como uma reunúncia política a nossos pais.
Parece que não são apenas os pais que podem rejeitar os filhos. Os filhos também rejeitam os pais.
Assim como nós rejeitamos o projeto de Brasil que nos levou ao estado das coisas agora.
A política do silêncio
Em uma conversa espontânea essa semana, descrevi a relação entre duas pessoas que conheço como política do silêncio. Onde as pessoas tem um relacionamento completamente operacional, mas desprovido de qualquer conversa que não seja sobre coisas práticas do dia a dia. Um acordo mútuo se estabelece ali: divide-se um espaço físico, mas jamais um espaço emocional ou intelectual de troca. Essa relação é forçada por um fator externo: a questão financeira, que impede a independência física das duas partes.
O silêncio se instaura quase como uma posição política entre eles.
Acredito que os rompimentos entre a minha geração e a anterior manifestam-se sobretudo assim. Como jantares de família obrigatórios, onde não se toca em certos assuntos, e esses assuntos posicionam-se como fantasmas atrás de nós, atormentando pensamentos e falando conosco nas pausas. Nos silêncios.
É difícil imaginar uma solução para essas dinâmicas familiares sem pensar no Brasil e seus problemas de desemprego e fome. Os mesmos indicadores de desigualdade social que atormentaram nossos pais – e estabeleceram o silêncio político e a censura da ditadura – fazem de nós uma nação de precarizados. O abandono e a mágoa são coletivos, mas é no âmbito individual que eles nos machucam mais profundamente.
Será que, como nossos pais, vamos forjar a próxima geração nos problemas que seremos incapazes de resolver?
Jabás e Recomendações
Em abril volto para a Suécia. E de lá, participo de um evento internacional sobre ficção científica, entre 6 e 8 de abril.
É o Flights of Foundry, realizado pela fundação Dream Foundry. Você ainda pode inscrever-se nas atividades, que são gratuitas, por este link. Fica a sugestão para quem gosta de literatura e quer treinar o inglês num espaço seguro de troca e respeito.
Eu vou participar em 5 momentos, falando não só de ficção científica brasileira, mas da produção de histórias de horror.
Essa é minha grade:
Panel - Finding the Locus of Horror in Your Story
Panel - Creating and Editing A Magazine
Panel - Spotlight on Brazilian SFF
Panel - More than Words: Translating Culture
Chill-n-chat with Vanessa Guedes
Semana passada escrevi uma resenha sobre o filme Duna, de 2021, com o artigo Duna: o filme com 10 nomeações ao Oscar, para o site de crítica Querido Clássico.
Também participei do Livros Maravilhosos, encontros literários organizados e curados pela Ana Rüsche, onde conversei com o doutor em Literatura e psicanalista George Amaral sobre ecofeminismo e o Manifesto das Espécies Companheiras, da escritora americana Donna Haraway (famosa pelo seu Manifesto Ciborgue).
E…por hoje é só!
Beijos, abraços e toda forma de reconciliação.
Vanessa Guedes.
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