A radical ideia de que a língua molda nossa percepção
Como as representações a que temos acesso criam nossa visão de mundo
Opa! Chegou uma galera nova por aqui nos últimos dias.
Espero que todos estejam confortáveis. Para saber mais sobre meu trabalho, esse aqui é meu site. Para quem quiser saber como é minha voz, recomendo começar pelo podcast Incêndio na Escrivaninha (onde sou colega de mesa da Ana Rüsche e do Thiago Ambrósio Lage).
Aviso aos navegantes: Esse texto pode conter traços de erros gramaticais, humanos e de digitação.
A morte ou O morte?
Van Gogh é conhecido pelas pinturas de cores vibrantes e pinceladas marcadas. Talvez você o conheça pela Noite Estrelada ou Os girassóis. O quadro que apresento aqui é um de seus primeiros trabalhos. O nem tão famoso Caveira com Cigarro Aceso.
Eu gosto dessa caveira porque mesmo fumando, um fenômeno que só acontece na presença da respiração, e a despeito da posição da figura como um retrato, ela ainda parece muito morta. Não consigo olhar para essa obra do mesmo jeito que olho para outras representações de caveira, que me parecem tão vivas a despeito de seu simbolismo óbvio.
A morte é majoritariamente representada pela figura de uma caveira na cultura e na arte ocidental (risco um traço entre ocidente e oriente porque não sinto que fui exposta o suficiente a representações culturais do lado leste do globo para fazer afirmações mais globais). Na língua nativa de Van Gogh, o holândes, a morte é um substantivo de gênero neutro. Isso é indicado no artigo ‘de’ que marca a palavra morte em holândes, “de dood”.
Na pintura acima, obra do alemão Adolph Menzel, a morte vem de cartola. Uma figura masculina, funcional, o retrato da morte simplesmente fazendo seu trabalho. Na própria pintura vemos uma brincadeira em que o pintor “alemaniza” o latim com a palavra Plusquamperfectum, que significa “mais que perfeito”. Diferente de outras línguas germânicas, como o holândes e o inglês, no alemão a morte é definida pelo gênero masculino. Nada mais natural que ela venha de fraque, calças e cartola no par de aquarelas engraçadinhas de Menzel (ele tem uma outra obra que faz par com essa, onde a morte foge quebrando a janela).
Na obra do austríaco Alfred Kubin, a morte vem de vestido e adornada com um colar (parece uma medalha, eu sei). A morte aqui é uma mulher. Embora Alfred tenha sido educado em alemão, sua primeira língua é o tcheco, onde a palavra morte é feminina.
Relativismo linguístico na criação
A personificação da morte parece enormemente influenciada pelo gênero atribuído à palavra morte na língua materna do artista, ainda que não seja uma regra rígída (como quase tudo no mundo da arte). Isso pode ser observado em inúmeras outras imagens de personificação, é um papo longo.
“O gênero gramatical de substantivos na língua nativa de artistas prediz o gênero de personificações em arte? Analisamos trabalhos de arte na base de dados ARTstor (uma biblioteca digital de arte contendo mais de um milhão de obras) para medir essa correspondência. Nossos resultados mostraram que o gênero gramatical previu o gênero da personificação em 78% dos casos.”
(SEGEL, Edward; BORODITSKY, Lera. Grammar in Art, Frontiers in Psychology, 2011, tradução nossa).
Há mais de um século as pessoas começaram a dar mais atenção a isso nos estudos de línguas, criando um conjunto de hipóteses e discussões mais conhecido como relativismo linguístico. Nesse ramo de estudos, linguistas fazem perguntas e suposições sobre como as línguas influenciam o modo que vemos o mundo.
Nota: Eu não sou linguista ou especialista em línguas, então o que conto aqui é do ponto de vista de uma pessoa muito curiosa.
Uma coisa interessante sobre aprender novas línguas é que vamos inserindo conceitos e ideias novas ao longo do caminho. Uma coisa muito banal que acontece comigo depois de estar exposta a língua sueca há alguns anos é quando falo avô ou avó. A necessidade de - mesmo quando falo em português - sempre marcar se falo de avós maternos ou paternos é muito forte, coisa que antes não era. Se eu ia contar uma história sobre minha avó, antes eu falava só “a vó”. Hoje eu tenho que falar “minha vó por parte de pai”, por exemplo. A única diferença entre ambas situações é que agora eu conheço sueco, e em sueco as palavrás vô e vó são marcadas por qual lado da família a gente se refere.
E é aqui que eu me arrisco a me perguntar, como se estivesse na mesa do bar: como a estrutura da língua portuguesa atravessa a forma como nós descrevemos o mundo ao nosso redor?
E como acontece na personificação de ideias no mundo da arte, também me pergunto como a nossa exposição excessiva a elementos culturais de fora do Brasil também colabora para que a gente continue repetindo lógicas e representações que nem sempre traduzem a essência da nossa própria experiência. Seríamos moldados pelas representações artísticas, culturais ou midiáticas que consumimos? É possível controlar isso?
Cruzando os espaços do nosso imaginário
Como leitora ávida de livros de fantasia e ficção científica, começo a me perguntar como a maneira que representamos o mundo também é afetada pela nossa língua. Ou melhor: penso em como a nossa língua afeta a maneira que criamos novos mundos.
“Uma artista faz do mundo o seu mundo. Uma artista faz do mundo o mundo. Por um curto tempo. Por quanto tempo leva olhar ou escutar ou assistir ou ler o trabalho de arte. Como um cristal, o trabalho de arte parece conter o todo, implicando eternidade. [...] Nossa cultura, que conquistou o que chamamos de Novo Mundo, e que vê o mundo da natureza como um adversário a ser conquistado: olhe para nós agora. Esgotando tudo.”
(LE GUIN, Ursula. Dancing at the edge of the world, Groove Press, 1997, tradução nossa).
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Para complementar
O estudo da influência da língua na representação artística pode ser conferido no trabalho Grammar in Art, um dos muitos artigos e parcerias da professora linguista Lera Boroditisky.
Lera também tem um Ted Talk fantástico, em inglês (com legendas em inglês), com exemplos reais de estudos de relativismo linguístico.
Jabás e recomendações
Mês de outubro tá aí, por isso você está recebendo várias imagens de caveira nesta edição. Hehe. Deixo aí o jabá do meu conto de horror na Amazon, Gênese de um corpo quente.
Para quem tá querendo uma série dramática boa, com longos diálogos cabeçudos sobre a morte, indico fortemente a Missa da Meia-Noite, na Netflix. Tem a ver com o mês do horror, mas é uma grande reflexão sobre a vida, a morte, e as nossas expectativas para ambas.
E para quem curte newsletter narrativa: estou acompanhando a Paisagens Marcianas, do Toni Moraes. Vale a pena.
Na última sexta, publiquei uma thread (o famoso fio) no Twitter sobre porquê diabos as pessoas estão publicando textos tão longos no Instagram e outras redes sociais.
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E por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Sent from my tamagotchi
Amei demais esse texto! Sempre me impressiona e me me faz sentir artista quando encontro, em um job de tradução, a necessidade de mudar toda uma frase por conta desses atravessamentos linguísticos.