A vida depois dos 30 recém começou. Mais ou menos.
Para que serve a universidade? A professora da aula de Shakespeare lançou essa assim ontem, como se estivéssemos prontos para debater o propósito daquele espaço ao invés de estarmos apenas rezando para não sermos chamados para ler o soneto 130 em voz alta na frente da sala toda. Eu mesma passo metade do tempo rezando para não me chamarem para coisa alguma, deusmedibre. Não porque tenha medo de falhar, mas porque dificilmente ficarei presa na inércia da falta de vontade; o tesão me move mais. Mas nem sempre aparecer é diplomático. Imigrante é assim, cheio de estratégias, sempre tomando rasteiras do coração. A professora loucaça, apaixonadíssima pelo objeto de ensino, e por isso mesmo provavelmente uma das pessoas mais verdadeiras com quem vou topar na vida, não podia cruzar o olhar comigo. Eu sabia aonde ela queria chegar antes que começasse o falatório.
Era a introdução para discutir o conceito de cânone literário – que os gringos pelo menos tiveram a decência de chamar de “cânone ocidental”, western canon, como se isso melhorasse alguma coisa, mas vamos chegar lá –, um conjunto de textos (livros, poemas, mitos, histórias…) que constroem uma base sólida de ideias importantes que solidificam a nossa cultura. É difícil definir o que caralhos quer dizer cânone sem parecer uma pretensiosa, mas podemos dizer, por exemplo, que Romeu e Julieta é cânone. Tem até doce com nome desses dois (se essa história surgisse hoje, chamaríamos o casal de Roeta ou JuMeu? Fica aí o questionamento) e é fácil reconhecer referências à história em qualquer contexto – Romeu e Julieta pode ser um sabor de pizza, o nome dos cachorros da vizinha, uma peça de teatro de 500 anos e um filme estrelando Leonardo DiCaprio. Mas a aula da professora em questão não era sobre esses dois adolescentes falecidos na nossa imaginação. Era sobre outras peças de Shakespeare, em contraste com a fama de outros dos seus contemporâneos, que vamos ler nos próximos dias. A discussão toda foi uma tentativa bonita da professora em nos ensinar a questionar coisas que definem o que é cânone - e assim, também exclui coisas que não são. Quem diz o que é cânone? Quem escreve o cânone? Quais autores levam essa mamata? Quem está pagando por este texto antes e depois da publicação? Porque isso, meus caros, define muitas coisas sobre o processo de criação na literatura. Desde os tempos de fucking Shakespeare até as coisas que você lê por aí na internet.
Na saída da aula anteontem, topei com uma turma de mestrandos do lado de fora da porta, esperando para entrar no auditório do Instituto Sueco de Cinema, onde tenho aula de… bem, cinema. Fazia tempo que eu não via tanta gente estilosa junto, cheguei a sentir um arrepio na nuca. Na antessala de poltronas de couro vermelho onde a gente espera o professor – sim, o lugar é chiquérrimo, mas pelo menos tem pichação nas cadeiras do auditório, como qualquer espaço acadêmico saudável – havia uma mulher encostada no batente da porta, o rosto iluminado pela luz do celular, de baixo para cima. Um delineado impecável nas pálpebras. De blazer preto, blusa preta e uma calça de alfaiataria bordô, sustentava a metade de cima do cabelo vermelho fogo em um coque bagunçado, as tatuagens despontando pelo pedaço de pele visível do peito onde o blazer displicente não cobria. Alguma coisa me enfeitiçou ali e, embora ela sequer tenha notado minha presença, me tornei super consciente do meu moletom folgado com estampa do Yoshi (sim, o dinossauro do Super Mario), o tênis velho, a calça legging e o cabelo amarrado em rabo de cavalo estilo terceiro ano do ensino médio. Alguma coisa naquele blazer atravessou a estampa infantil do moletom e me doeu a falta de algo profundo, algo que eu sequer soube nomear. Me espremi para passar rapidão pela porta e sair da sala atulhada de gente. A mulher, vidrada no celular, não me notou nem quando dividimos o batente da porta por um segundo. Já no corredor, me escondi do mundo imediatamente, fui correndo para dentro da biblioteca, claro, fiquei lá olhando a sessão de livros sobre surrealismo, martelando a ideia de que naquela manhã me vesti como uma adolescente. Como se o moletom me anulasse as formas, a experiência, a vida que vivi antes de chegar ali. Usar aquelas roupas era fácil, prático e confortável, assim como é confortável andar pelo mundo como um pedaço de massinha de modelar e ser, então, modelada, amassada, modelada de novo. Os moletons não são exatamente infantis. São bolhas de ar abrigando pessoas em um processo seguro de transformação. Não é para isso que serve a universidade?
Essa semana, dentro do meu guarda-roupas, a vara de madeira onde penduro as roupas quebrou. Eu estava sozinha no quarto, meditando em silêncio, quando ouvi o som de “creque” e o barulho das fivelas dos cintos batendo contra a madeira, os cabides se empilhando, a melodia do caos. Abri as portas do armário, olhei a tragédia e fechei. Nope. Hoje não. O peso das camisas chiques de botão, minha pequena coleção de blazers, as calças de alfaiataria esticadas nos cabides, botões, botões, botões, para quê tantos botões?, são roupas demais para um pedaço de madeira tão frágil e tão vagabundo. Caiu tudo como sucumbiu Pompeia sob a lava do vulcão. E como os sobreviventes de Pompeia, eu escolhi deixar a tragédia paralisada ali, no ato da morte e presa no tempo. Imóvel. Tipo a minha carreira antes da universidade, solidificada numa lava quente em processo de esfriamento, preservada em uma pausa. Uma intermitência da natureza. Os blazers, substituídos pelos moletons, sucumbiram. Penso nas vidas e nas possibilidades desses corpos queimados na minha pequena Pompeia. Esses dias meu antigo chefe me ligou. Perguntou quando eu voltaria. Em 1748, quando as escavações começarem, respondi. Mentalmente. Só eu sei o quanto me custou deixar o Vesúvio fervendo até entrar em erupção.
Meu guarda-roupas guarda um sítio arqueológico. Não é para isso que serve a universidade?
No final, com minhas habilidades de estudante, descobri que Romeu e Julieta, na verdade, é invenção de um italiano tão italiano quanto o Vesúvio. Matteo Bandello, que escreveu uma historinha sobre um casal apaixonado em Verona no meio de um compilado de muitas historinhas – tipo um livro dos irmãos Grimm, só que para adultos – que foi traduzido para o inglês e então o tradutor, Arthur Brooke, que mais tarde morreria num naufrágio, escreveu um poema baseado nisso (que eu li e posso afirmar que é uma prosa, não um poema, mas a academia discorda de mim) e esse poema caiu nas mãos de Shakespeare. Daí veio a ideia para criar a peça Romeu e Julieta. E aquele doce com goiabada. E a pizza. Você sabe. É claro que eu descobri essa história toda do Matteo Bandello lendo a página da Wikipédia sobre Romeu e Julieta. Não é para isso que serve a universidade?
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Ai, Vanessa, que crônica. Amo a forma como você escreve. Amei ❤️
Amei demais ♡♡♡