Esse texto é um exercício criativo sobre o luto, esse aspecto da vida que não segue a lógica do tempo linear. Às vezes você está ali fazendo uma coisa super divertida e ele bate, sem aviso nenhum, se manifestando nas formas mais inesperadas.
Avisos de gatilho: morte, luto, suicídio, violência.
De início, esse texto se chamava Ode a meu amigo suicida. Mas pareceu-me de bom tom remover qualquer resquício de lirismo épico ou tom de homenagem que pudesse romantizar o suicídio em si. Enquanto Bernardo, a pessoa citada aqui no texto, realmente existiu, estou usando um pseudônimo para poupar… não sei quem. Talvez a família dele. Talvez meus próprios amigos ou eu mesma.
Também é um texto que fala sobre Deus, mas não como uma entidade, e sim como um acontecimento. As experiências que tive com o divino, quando eu acreditava na sua concretude, me marcaram. Não importa se eu acredito ou não hoje em dia. Elas imprimiram mudanças em mim, sim. Não tem porque esconder.
Há de se levar em conta que nem todo trauma parece um trauma quando passa pela gente.
Uma breve vida
Antes, era tudo um borrão. Depois as formas viraram gente, mãe, pai, tias, família, e o espaço virou parede, casa, prédio, rua, cidade. Fomos morar em um bairro modesto, em uma via de paralelepípedos onde os carros dividiam espaço com os cavalos; a rua onde cresci. Ali cresceu também Bernardo. Não sei em que dia ou momento exato nossos corpos pequenos se reconheceram no redemoinho de crianças, mas no fundo é como se ele estivesse sempre ali, enraizado no prólogo da minha vida. Os anos se desembaralharam rápido, até que aos sábados passamos a ir para a catequese, onde sentávamos quase sempre juntos. No dia da primeira comunhão, eu de vestido branco alugado e ele de fraque emprestado de algum parente, entramos desengonçados na igreja de mãos dadas — a despeito das piadas dos outros pequenos cristãos, que diziam que éramos namorados. Não éramos. Mas se ele quisesse, talvez eu quisesse também. Talvez.
Eu tinha medo do momento da comunhão. De encarar o padre e confirmar meus votos de contrato eterno com essa figura maior que a vida, e absolutamente incompreensível, que era Deus. Bernardo segurou minha mão para que eu não precisasse olhar nos olhos de Deus sozinha. Na fileira da frente, enquanto sentávamos no lugar privilegiado próximo ao padre, uma de nossas colegas de catequese tremeu violentamente, até que mijou nas calças. O líquido espirrou na meia-calça branca como uma pistola de água esguichando contra nossas roupas secas no verão. Foi uma reação forte, mas a compreendemos de imediato. Poderia ter sido eu, sem dúvidas; minha alma seria capaz de chacoalhar meu corpo àquele ponto sim. Levaram a garota para fora e a missa continuou. Permaneci de dedos entrelaçados com Bernardo e rezei para que aquilo não nos acontecesse.
Então foi isso. Prestes a provar do corpo de Jesus Cristo pela primeira vez, rezei para que Deus, seu pai, segurasse meu xixi na bexiga.
Era tudo o que eu desejei de quem tinha o poder absoluto sobre tudo. Firmeza, calma e coragem. Amém.
E assim foi. Com a hóstia colada no céu da boca, voltei para meu lugar e esperei que ela se dissolvesse para alcançar a mão de Bernardo de novo, de olhos fechados. Ao mexer o punho, senti que a mão dele já procurava a minha e no esbarrão de dedos, nos enganchamos de novo. Enfim, comungados. Aguardamos juntos o encontro com Deus.
Naquela época a igreja do bairro não existia. Se a imaginação construiu uma igreja até aqui, desculpe. Havia um padre, sim, e havia uma paróquia, sim. Mas nós transformávamos a escola do bairro em igreja todo sábado e domingo para a catequese e a missa. Era um ritual antes do ritual; chegar antes de todos para arrumar as cadeiras de sala de aula em formato de igreja no saguão da escola. E guardar tudo de volta depois que o último fiel deixasse a sala. No dia de Páscoa era sempre mais fácil, o padre rezava a missa lá fora no pátio, e então a gente podia acordar um pouco mais tarde no domingo. Nos anos que seguiram a comunhão, eu e Bernardo trabalhamos junto com tantos outros vizinhos coletando tijolos, cimento e todo tipo de doação, e fomos ajudando a construir a igreja em um terreno acidentado e cheio de mato, cedido por uma madeireira local. Era um dos nossos sonhos em conjunto; ter uma igreja de verdade no bairro, para ficarmos juntos na companhia de Deus como Deus merecia.
Eu e Bernardo éramos iguais na seriedade com que colocávamos nossos desejos no domínio do planejamento. E às sextas-feiras, dançávamos grudados no galpão. Ele de bombacha e lenço vermelho de maragato no pescoço, eu de vestido de prenda turquesa e coque no cabelo. A pele dele era morena clara e os olhos guardavam um abismo negro intenso e brilhante, onde as luzes batiam criando constelações.
Mas de tudo que me agradava na figura de Bernardo, o sorriso cheio de dentes era o melhor. Era um sorriso que me movia, pelo qual eu faria qualquer coisa só para vê-lo acontecer. Bernardo era essencialmente sério, mas tinha esse lapso, esse tesouro momentâneo que eu gostava de pensar que pertencia a mim quando eu o provocava.
Uma longa morte
Não sei exatamente o dia em que aquela sombra repentina desceu sobre seu rosto e o sorriso sumiu para sempre.
Era uma época difícil para todos nós ali da rua. Crescíamos sem parar e nossos pais não sabiam o que fazer com a gente. Ouvíamos os berros uns dos outros pelos muros, as surras tornaram-se mais constantes do que eram na infância. Mas nenhum de nós chegava a aparecer de olho roxo, cortes feitos por cintos de couro ou varas de vime. O Bernardo sim. Seu irmão mais velho também. (A irmã mais nova era pequena demais na época). Acho que foi quando o irmão dele saiu de casa que o cerco apertou. Os adultos sabiam do que se tratava, claro. Mas não faziam nada. O pai de Bernardo era policial, ninguém ousaria uma denúncia. Não. Ninguém seria louco o suficiente.
Era engraçado como a casa deles era a mais silenciosa da rua. Era como se os gritos nunca vazassem para fora como os nossos, e ainda sim as crianças dali eram sempre aquelas com os piores machucados. Eu admirava-os por não deixar extravasar a dor. Pensava que Bernardo estava se tornando um cara forte e duro. Daria-se bem no exército, sem dúvidas. Naquela época todos os meninos almejavam ser chamados para servir à pátria, sua melhor aposta para uma vida melhor por aquelas bandas.
Então teve aquela tarde em que nosso redemoinho de adolescentes estava mais alto, e a maioria de nós tinha completado 16 anos. Bernardo estava sozinho em casa, um momento raro, e chamou quase todo mundo para ir lá jogar algum jogo novo. Digo quase todo mundo, porque eu não fui convidada. E me ressenti. Fui tomada por uma pequena amargura. Pensei em ir lá no dia seguinte, como quem não quer nada, para ver se ele ia me confessar que chamou todo mundo menos eu. Fiquei em casa ouvindo um disco gasto do Pink Floyd, que eu tinha comprado com meu próprio dinheiro. Além de estudar no centro da cidade, eu andava fazendo bicos e tinha também arranjado um namorado lindíssimo, de olhos azuis gigantes, que morava num bairro bem mais nobre que o nosso. Raramente eu estava em casa. Perguntava-me se seria esse meu crime, se Bernardo ressentia-se de mim também.
Eu estava sentada no chão de piso frio da sala, sozinha em casa, quando ouvi o estouro. Achei que fosse alguma bombinha nova que alguém inventou, mas o silêncio sepulcral que seguiu o estouro não combinava com essa hipótese. Estranho. No momento seguinte, a rua foi tomada por gritos. Não de excitação, mas de pavor.
Fui até o portão espiar. Os cães latiam e a vizinha da esquina desceu a rua anunciando a plenos pulmões “O Bernardo tá morto! Alguém chama uma ambulância”. Ela se aproximou de mim pela calçada e me disse num tom mais baixo “Tem um buraco enorme na cabeça dele” e seguiu falando coisas com sangue, chão, sei lá mais o quê, que não ouvi mais. Fiquei surda.
Um buraco. Na cabeça. Dele.
Escurecia. Subi no telhado de casa — eu tinha mania de escalar pela sacada do meu quarto, engatinhar pelas telhas vermelhas e deitar lá em cima enrolada em um edredom grosso, para ver o céu. Me aconcheguei. A noite caiu de vez e um véu de sombras desceu sobre meus olhos, me obrigando a contemplar o abismo invertido do espaço. Imaginei Bernardo deitado comigo, bem ali do meu lado, bem perto. Segurei sua mão e aguardei, esperando que ele visse Deus.
Não trocamos palavras e quando abri os olhos, ele continuava comigo.
Descemos do telhado juntos e entramos no meu quarto. Existir é violento, eu sei. Compartilhei com ele o desejo de sumir, de dar um basta em todas as coisas que não podíamos consertar no mundo. Eu não precisava perguntar por que ele tinha feito o que fez, mas repeti incontáveis vezes que o melhor era deitar no chão e escutar um disco. E assim fizemos até o sol nascer.
Comigo Bernardo experimentou o primeiro cigarro, e todas as outras primeiras vezes possíveis. Vivemos o véu do deslumbre de quem comete atos proibidos, rebeldias impensáveis. Ir contra a corrente, contra o aprendizado. Ele tinha para si um entendimento do mundo pelo meu corpo, vibramos a adolescência até o último momento, como vibram as cigarras cantando o verão. Seu desejo primordial de fuga o aprisionou a mim. Se eu queria? Não sei. Mas foi do jeito que deu.
Ninguém mais falava no nome dele e sua família foi embora para sempre da vizinhança. Eu também já não conversava mais com os outros que estavam na casa dele naquele fatídico dia. Não sentia necessidade, pois Bernardo estava sempre comigo. Eu o vislumbrava de relance nos momentos mais intensos, gostava de invocar sua presença com minhas atitudes de jovem em crescimento, chegava a orgulhar-me de tê-lo tão próximo. Me surpreendia sobretudo com minha própria ousadia em mantê-lo comigo, meu segredo particular, meu companheiro secreto de vida.
Se era vida que faltava a Bernardo, era vida que eu lhe entregava. Juntos lemos muitos livros e choramos quando Frodo voltou ao Condado despedaçado após a jornada que destruiu o Um Anel. Choramos também todas as vezes que voltamos juntos à rua onde crescemos e não encontramos mais os cães que cresceram conosco. Por que a vida deles era tão mais curta do que a nossa?
E foi assim que Deus virou deus, uma memória, um personagem. Mais um entre tantos deuses e deusas que as pessoas encontram no mundo. A mão de Bernardo encontrava a minha toda vez que eu estava prestes a pular na água gelada das cachoeiras, partir mato adentro, mergulhar por cavernas e cânions, onde provamos juntos o gosto metálico das borboletas azuis sobre os olhos.
O Bernardo com o buraco na cabeça, dizem, foi para a terra fria sem reza, sozinho e sem deus nenhum. Seu crime foi o maior de todos perante os tijolos do templo que ajudamos a erguer. Mas agora não importa. Eu consagrei seu desejo de vida com a minha, com as nossas mãos unidas.
Bernardo nunca foi notícia de jornal. Isso me surpreendeu porque, um pouco antes dele, um outro garoto de 16 anos tirou a própria vida na nossa cidade e seu nome apareceu em todos os jornais, até na televisão. Seu nome era Yoñlu. Tínhamos amigos em comum, eu e Yoñlu, mas nunca o conheci pessoalmente. Ele também era desses jovens que circulavam mais pelo centro do que pela periferia da cidade. Yoñlu gravou um disco antes de morrer e há uns anos atrás fizeram um filme sobre ele. Era um garoto rico, um artista. E com seu sofrimento eu pouco, ou nada, me identifiquei.
Dizem que depois do Yoñlu outros de nós também cometeram o mesmo crime. Mas ninguém mais apareceu no jornal. Foi um papo que correu na boca miúda entre os adolescentes naquele fatídico ano. Talvez a repercussão do Yoñlu tenha causado esse efeito. Enquanto isso, eu e Bernardo nos resguardamos das fofocas e nos recolhemos em nossa solidão.
Hoje, nós três temos 32 anos no meu coração. Foram duas vidas de Bernardo. E finalmente, sentados sozinhos ao pé da árvore da vida — um freixo, a Yggdrasil — aqui do outro lado do mundo, ouvimos juntos a música de Yoñlu pela primeira vez. Claro que eu afirmei várias vezes pela vida que eu havia escutado o álbum todo, sim, excelente. Mas era mentira. Mais uma das traquinagens com Bernardo.
A verdade é que não conseguíamos ouvir o menino rico. À primeira nota, pause. Não dava. Mas então, hoje, deu. Ouvimos uma única música de Yoñlu, a única cujo título tivemos coragem; fala de um amor não correspondido por uma garota.
Talvez não exista música mais adolescente do que essa. A dor de amor de Yoñlu encheu-me de ternura e raiva, uma espécie de tremedeira provocada pela ideia de que ele não se deu a chance de sofrer de amor de novo, de novo e de novo. Meu coração se enfureceu de uma revolta de repente. Uma revolta antiga, dura, pesada.
Quis gritar com Bernardo e Yoñlu pela primeira vez.
E então me vi adulta, assim como sou agora. E com minha autoridade de adulta, me vi de volta àquela rua, àquele ano, àquela casa onde os adolescentes se reuniram à volta de Bernardo, sem saber que ele estava prestes a estourar os próprios miolos na frente de todos. Invadi o lugar, chutei a arma do pai dele para longe e envolvi o garoto em um abraço.
Levei Bernardo para longe e disse-lhe que aqui havia um adulto que se importava.
(Aqui é o momento em que choro. Por mim, por ele, por todos nós que um dia não encontramos saída).
Abri os olhos e senti o tronco da árvore às minhas costas, o sol esquentando minha pele e a mão de Bernardo de novo dentro da minha. Demos uma última olhada na infinitude do universo juntos e, então, deixei que ele fosse embora.
Não acho que ele se foi para sempre. Faz tempo que já não sei onde começa o meu eu e onde começa o dele. De alguma forma, nos misturamos. Não importa que a fé não exista mais. Não há como passar juntos pela expectativa de encontrar Deus sem fundir alguma coisa lá dentro no íntimo.
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O texto acima foi revisado pela minha querida amiga Leticia Dáquer, tradutora, blogueira e podcaster no incrível Pistolando Podcast. Chamem a Let para revisar os textos de vocês!
Let, obrigada pela força.
ATENÇÃO
O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.
Ligue 188.
Pequeno jabá
No episódio 15 do podcast Incêndio na Escrivaninha, conversamos sobre Morte com a Laura Muller, médica na área de cuidados paliativos. Esse episódio me traz muito conforto quando penso sobre morte.
Satélite de recomendações
Livro
Para quem chegou aqui pesquisando sobre esse tema pesadinho que é suicídio, o melhor livro sobre o o assunto que eu já li é O Suicídio como Espetáculo na Metrópole (aqui na Amazon), da pesquisadora Fernanda Marquetti, professora do Departamento de Ciência do Movimento Humano na USP.
Ela analisa os aspectos do suicídio como uma transgressão que faz com que a comunidade ignore a privacidade de quem o sofreu, como um grande acordo social automático; assim como analisa casos de suicídios em lugares públicos e determina essas mortes como uma “epidemiologia da cidade”. Como um sintoma dos problemas da vida urbana nas grandes metrópoles.
É um livro acadêmico, mas me trouxe um entendimento mais profundo sobre esse assunto que me atravessa o coração de uma maneira muito bruta.
Podcast
Meu inconsciente coletivo é o podcast da Tati Bernardi onde ela senta no divã e faz uma sessão aberta de psicanálise com um psicanalista diferente a cada episódio.
Nesta nova temporada, ela está levando personagens da literatura mundial para serem analisados. É bem interessante e eu tenho escutado um por semana, na hora de fazer faxina em casa.
(Não é para isso a psicanálise? Para organizar o que a gente sujou e bagunçou enquanto vivia nossa vida?)
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Caramba, Vanessa, que texto lindo. Fiquei arrepiada varias vezes. E vou reler com mais calma depois - quanta sensibilidade e amor, mesmo num tema dificil.
Lindo texto!