Toda vez que leio um texto, surge uma voz na minha cabeça comunicando as palavras, como se fossem ditas em alto e bom som, em tom perfeito para meus ouvidos.
Ouvidos de leitores são capazes de escutar palavras que nunca foram ditas através do som. Que mesmo chegando no silêncio fazem um barulho absurdo, formam gritarias, corais de igreja, maremotos, provocam reações inesperadas. Essas coisas não passam nunca pelos tímpanos; são apenas ilusões do cérebro.
Essas palavras, na realidade, entram pelos olhos, inundando o pensamento de ideias e obsessões. Como um choro invertido que forma um mar para dentro dos miolos.
O fenômeno acontece por qualquer meio ou mídia. Seja livro, revista, jornal, tela de celular ou computador. Os textos me inundam. Sorte é encontrá-los pelo mundo.
Sabe o que é mais fantástico, horroroso, absurdo e maravilhoso sobre tudo isso?
É procurar essa enchente de palavras voluntariamente. Na miúda da internet, ler as letras de outros, como quem transa no canto escuro escondido com um velho amante e no dia seguinte conhece uma paixão nova, levando-a para gemer no mesmo canto escuro, sem culpa, sem pudores.
Transar com ideias
É assustador pensar em ideias como fodas, mesmo que algumas sejam sempre bem dadas lá no meio da nossa cabeça e deixem a gente suspirando e pensando nelas por dias, semanas, talvez meses. Tenho esse tipo de sentimento com blogs e newsletters; acho bonito que eu tenha sido adolescente na época de ouro dos blogs, quando tudo era novo, experimental e a atração pelo texto era tão genuína, tão inocente, quando bastava uma leitura para que o arrepio se estendesse até o osso.
Trintei e aqui estão as newsletters. Há um frenesi pelo novo, sim, mas é um novo conhecido. Um velho novo. A experiência me faz mais seletiva, mas também me encontra tão aberta quanto antes para arriscar, experimentar novas posições, novas vozes, novas ideias. Encontro pessoas de antigamente e conheço desconhecidos que dividem o mesmo entusiasmo renovado pelo texto. Estamos saudosos, mas não celebramos uma nostalgia vazia; nossa animação vem recheada de experiência e daquele desprendimento que só quem viveu para se tornar uma pessoa muito interessante tem.
Blog ou newsletter?
Se você estiver lendo esse texto em 2002, blog. Na próxima década, newsletter será sinônimo de spam, propaganda de loja e promoção, e as pessoas estarão usando ferramentas RSS para ler textos na Internet. Sua avó e sua mãe ainda estarão confusas e provavelmente off-line, sem entender bem a diferença entre digitar um e-mail e uma URL no campo de texto do navegador. Blog é o negócio entre 2002 e 2015.
Se você estiver lendo isso em 2022, newsletter. Enquanto pudermos. O e-mail é o único elemento que atravessou conosco 3 décadas de world wide web e continua firme e forte. Não é incrível? Hoje as pessoas e os serviços de e-mail aprenderam a lidar melhor com spam; quase todo mundo sabe a diferença entre uma newsletter de loja e uma newsletter literária - se ainda não sabem, em breve saberão. Confia. Sua mãe e sua avó estão mais online do que você e também leem textos, ou melhor, textão - mas no Facebook, no WhatsApp e no Instagram.
Na newsletter, as pessoas têm seus textos guardados para sempre no e-mail delas. Não importa o que você faça no futuro, o texto já entrou lá. Não é mais só seu.
Admito que vim parar no Substack porque a newsletter aqui é versátil: também é exibida como um blog. A plataforma resolveu meu Drama, assim, com D maiúsculo, de quem gosta da acessibilidade do blog, mas sabe que eles não chegam mais nas pessoas - a menos que você já seja famoso por algum outro motivo ou tenha um público leitor fiel que começou com você 10 anos atrás. Ou se você tiver muitos seguidores em outras plataformas. Aliás, esse é o problema de começar um blog independente hoje em dia - e com independente eu quero dizer: fora do Medium, por exemplo, ou qualquer outra plataforma que vai fazer seu texto girar por ela através de sua função de recomendações automáticas.
Sinto que a perenidade das newsletters é uma tentativa de ir contra a corrente. Veja que estamos fazendo exatamente o que fazíamos na época de ouro dos blogs: chegamos em autores novos por indicações dos autores que já gostamos.
Eu gosto de blogs, sim. Mas eles só funcionam como ecossistema se há uma disponibilidade das pessoas de usar agregadores de conteúdo através do maldito RSS.
"O RSS é um desses protocolos simples e geniais, tão abundantes na era da internet utópica. Funciona como uma espécie de caixa de e-mails que você abre e — tcharan! — visualiza todas as atualizações dos sites que você escolheu. [...] Embora o RSS seja a chave explicativa do nascimento e morte da boa internet, as redes sociais foram um complemento simpático quando ele ainda estava em cena [...] As redes sociais cumpriam o papel de agregador meia-sola para pessoas que não eram nativas o suficiente para usarem RSS, e ofereciam opções mais dinâmicas de interação para o resto de nós".
(Boa noite, boa sorte de Juliana Cunha)
O RSS morreu quando o Google Reader foi descontinuado. Nem vou entrar no mérito de explicar o que era o Reader; vou só sentar aqui e chorar um minutinho.
É um drama similar ao dos podcasts, e eu participei de um episódio do Não Pod Tocar que fala exatamente sobre isso. Junto com os colegas que deram sua opinião, nós trazemos uma explicação técnica e as implicações políticas por trás de tudo:
A verdade é que descobrir coisas novas pelas redes sociais do momento é conveniente. Mesmo que a gente reclame infinitamente dos algoritmos, estamos todos lá. Nossos olhos não desgrudam, é um fenômeno.
Mas o texto continua sendo nossa âncora.
E agora, em 2022, as pessoas estão chegando nos textos pelos e-mails (e pelo boca-a -boca entre amigos, pelos compartilhamentos nas redes etc).
Na newsletter Mercúrio em Peixes (crime ambiental ou astrologia?), o Thiago lança a real:
"Independente do motivo, todo artista tem que ir aonde o povo está. [...] Eu fico lembrando do filme que eu conheço sem nunca ter assistido, o do 'se você construir, eles virão' e… ouso discordar. Não basta construir. Tem que botar a boca no trombone, e tem que construir onde eles conseguem chegar. [...] O artista, o músico, o contador de histórias independente do meio estava lá, não importando se quem pagou quis ouvir."
(Da edição "008- Nos bailes da vida")
Tem que construir onde eles conseguem chegar.
Novos horizontes
Enxergo nesse movimento da comunidade de leitores e escritores de newsletter (os newletreiros?) uma vontade muito grande de se encontrar.
"Se encontrar" no sentido de encontrar a si mesmo, mas também de encontrarem-se uns aos outros. É uma experiência coletiva de alteridade. Não tem nada que me deixe mais feliz do que quando alguém me diz que se identificou com alguma coisa que escrevi aqui. Mas também não tem nada que me deixe mais feliz do que vislumbrar no texto de outrem uma ideia que nunca antes me ocorreu.
Não é bonito enxergar o mundo sob novos ângulos? Pensar em coisas nas quais jamais pensaríamos sozinhos?
Seja qual for o meio ou a mensagem, os fenômenos são provocados somente quando os olhos são inundados de ideias.
Para isso acontecer, a gente precisa vazar a si mesmo por aí.
E para vazar, há de se estar transbordando.
O texto acima foi revisado pela minha querida amiga Leticia Dáquer, tradutora, blogueira e podcaster no incrível Pistolando Podcast. Chamem a Let para revisar e traduzir os textos de vocês!
Let, obrigada ♥️
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Vem aí
Se tudo der certo, daqui a alguns dias eu vou embora em uma viagem sola, a pé. Eu, minha mochila e essa newsletter.
Algumas pessoas acertaram meu destino há algumas semanas. E eu vazei a informação aqui e ali nas redes sociais.
Se eu conseguir caminhar o suficiente, vou cruzar uma fronteira entre países e caminhar por onde caminharam os templários.
Para acompanhar a jornada, é só continuar lendo aqui. 😊
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Boa sorte na viagemmmmm <3
Oi. Acabei de curtir uma nota sua, e lembrei que citei esse post na minha primeira edição. Acho que esqueci de te mostrar hehehe. Abs https://luraindica.substack.com/p/nasceu-minha-newsletter-0