Tenho medo de estar impedindo o sol de nascer no horizonte. Enquanto o mundo dos outros me parece um pouco menos escuro, um pouco menos frio e menos carente de abraços, o meu se encolhe para dentro de si em uma pequena bola de impossibilidades.
Não me entusiasmo tanto pela reabertura dos lugares, dos cinemas, dos braços. Sonhei que estava numa festa e meu peito era inundado de estímulos, como se fossem drogas fortes, e eu ficava chapada de provocações sensoriais. Descobri ao longo desse ano que o medo de voltar ao escritório nunca foi provocado pela quarentena e o trabalho remoto (eu já trabalhei remoto antes), mas o pavor à rigidez da rotina, a obrigação em estar disposta todos os dias às 8, vestida, pronta para o mundo.
Estou aos poucos aceitando abraços de novo, semana passada fui até comer fora. Foi menos traumático do que fantasiei, admito.
De tudo que imaginei para esse período de re-normalização, jamais pensei que voltaríamos sem voltar. Parece que tudo é e não é ao mesmo tempo. É seguro e não é. Se afrouxa o cuidado um pouquinho aqui, mas continua seguindo essa medida de segurança ali.
E lá vamos nós, descobrindo novas formas de cansaço.
Nota: erros de digitação e humanidades rolam em textos cuja pessoa que escreve é a mesma que faz a revisão. Fica aí o aviso.
Caça aos cogumelos
No último domingo parti na minha primeira busca aos cogumelos. É uma tradição de outono aqui na Suécia, onde diferentes tipos de cogumelos são parte da alimentação tradicional local. Muitas vezes eles são trazidos da natureza direto para a cozinha, depois de um dia de caça na floresta; foi exatamente o que eu fiz.
Existe uma lei aqui, Allemansrätten, que (entre várias outras coisas) dá direito a qualquer pessoa coletar cogumelos, flores e frutos em território nacional, para uso próprio. 53% da área do país é floresta. Para todo lugar que você vai tem um bosque ou uma área verde com animais silvestres correndo livres (lebres e veados são os mais comuns na área onde eu vivo), bem estilo filme da Disney. Eu sinto como se minha casa se estendesse para fora das paredes do meu apartamento e abarcasse uma área muito maior do que aquela que me pertence de verdade. É um sentimento de liberdade e pertencimento muito forte.
Mas a tal caça aos cogumelos, de caça não tem nada. O costume diz que cada família tem um lugar secreto na floresta, cuja localização é passada de pais para filhos. Reza a lenda que os suecos são ótimos em compartilhar qualquer coisa com outras pessoas, menos a localização dessa área secreta. A fama da tradição ganha tons de humor em memes e piadas sobre isso são bem comuns. Mas o mais engraçado é que, mesmo quando a piada está rolando, as pessoas realmente parecem se sentir desconfortáveis com o assunto. Eu vivo aqui há seis anos e até hoje nunca tinha coletado cogumelos para alimentação. Nunca me senti segura de fazer isso sem a supervisão de um nativo ou alguém mais experiente. E visto que tem esse lance de segredo mantido a sete chaves, não acho que os nativos que eu conheço se sentiriam confortáveis em me levar com eles à uma “caçada”. Mas semana passada, encontrei um grupo disposto e finalmente rolou. A ideia era explorar uma floresta onde ninguém tinha área secreta marcada. Fomos lá explorar e tentar encontrar nossa comida.
Entramos no mato fechado - eu quase perdi um olho várias vezes me embrenhando no meio de árvores - e finalmente entendi a emoção que é encontrar o “pote ouro” escondido na floresta. Você precisa ir em lugares que outras pessoas não foram ainda. Dessa vez, estávamos na reserva de Flemingsberg. Até então eu achava que era uma besteira, que guardar o segredo dos cogumelos era um drama desnecessário. Mas lá dentro da floresta, no escuro do pé das árvores, respirando a umidade da terra e dos fungos, eu entendi. Encontrar cogumelos é uma tarefa cansativa. É uma mistura de trilha com abrir mato, se arrastando no chão o tempo todo.
A floresta é imensa. Tem cogumelo para todo mundo que se dispôr a se arrastar pelo chão do mato por algumas horas. Saber a localização de uma fonte de cogumelos não torna o caminho até eles menos árduo. E encontrar seu próprio lote traz um sentimento de recompensa enorme.
Depois de cerca de duas horas coletando cogumelos, meu companheiro encontrou uma área lotada de kantarell. Conhecidos também como skogens guld, o “ouro da floresta”, são os cogumelos mais saborosos e mais desejados no país. Nosso grupo comemorou o achado, e meu companheiro marcou no mapa (com GPS) a localização da nossa mina de ouro. Foi como um marco na vida aqui do outro lado do mundo. Agora temos nosso pequeno segredo. Mais um rito de passagem.
Chegando em casa, limpamos os cogumelos e comemos parte deles com massa. Ainda tem um bom estoque aqui para o resto do outono.
Jabás e recomendações
Conversei com a Aline Valek no podcast Incêndio na Escrivaninha, junto com os colegas hosts Ana Rusche e Thiago Ambrósio Lage.
Falamos sobre a década de 2020, as mudanças no nosso conceito de tempo e as consequências de vivermos todos no país Internet.
O pequeno relato acima era para ser o início de um email para o meu amigo Arthur Marchetto, que tem uma newsletter para falar tudo de legal que tem para se falar sobre cogumelos. Vão lá dar uma espiada na Ponto Nemo.
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Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
(twitter)
Sent from my tamagotchi
Que delícia de experiência!