Este texto pertence ao editorial Diário de conexões. São ensaios pessoais que conectam crises existenciais entre passado, presente, futuro, lugares, viagens e intimidade.
1. Você está presa na natureza. A cem quilômetros do círculo polar ártico, toneladas de neve cortando a escuridão vasta, monstruosa e misteriosa como uma mãe. Pinheiros e abetos transbordam pelos dois lados da estrada e pedacinhos de gelo caem do céu contra o parachoque do ônibus. O motorista freia bruscamente. Uma raposa gigante de pêlo dourado cruza a estrada. Parece uma entidade mística, uma mudança na sorte do mundo. Seus olhos se cruzam por um segundo radical. É como se o bicho escaneasse sua alma pelo avesso. Ela está tão aborrecida com a interrupção quanto assustada. Desaparece na massa sólida da floresta. O motorista arranca, não há tempo a perder. Pé pesado, passageiros ansiosos. Mil nacionalidades se sacudindo. Você é uma delas, só mais uma delas. Você é o Brasil inteiro dentro do ônibus. Você está presa na natureza e corre atrás da aurora boreal na noite congelada no topo do mundo, no norte da Suécia, quase na fronteira com a Noruega. O guia turístico, um cara de riso fácil, informa que enquanto a neve estiver caindo, não tem como ver nada no céu. Mesmo que vocês estejam no meio de uma alta temporada de atividade solar. Ah sim, você sempre esquece de mencionar. A aurora boreal são apenas faixas de luz solar lambendo a testa do planeta.
2. Três anos antes, num mesmo janeiro, você estava de pijamas no seu quarto, adoecida de covid pela primeira vez, isolada do mundo, quando a aurora boreal apareceu na sua janela. Você vestiu um casaco pesado, uma toca de lã e um par de botas — tudo assim, por cima do pijama mesmo — e foi correndo para fora. Para o mundo. Não havia ninguém mais na rua além de você e seu noivo. Você o convenceu a andar até o lago para ver as luzes de um ângulo melhor. Na beira da água, onde você gosta de nadar no verão e patinar no gelo no inverno, a aurora boreal dançou. E aí foi um grande foda-se para a atividade solar. O céu rasgou-se e você olhou ali do outro lado uma outra dimensão. Um número de sombras marchava pelo céu. Gigantes feitos de luz.
3. O guia turístico avisa que há uma clareira no meio da floresta mais ao leste, onde o céu está mais limpo. O motorista toca para lá. Você pensa no verde aturquesado das luzes e faz um esforço para não sonhar. Seu namorado está ao seu lado e vai ver a aurora boreal pela primeira vez. Ele aponta para o céu. Vocês conseguem ver a lua, é um bom sinal. O céu está limpando e a neve cai com menos violência.
4. Daquela vez que você viu a auora pela primeira vez, você arrancou a máscara PF-algum-número-que-apagou-da-memória e sorriu para a câmera que apontava para você, do celular do noivo. Você tinha o pedido em casamento espontaneamente meses antes, em um restaurante qualquer, e fez uma aliança de guardanapo. Ele perdeu a alinça pouco tempo depois e você suspeita que foi de propósito. Mas não importa. Quando vocês viram a aurora juntos, você quis o beijar mas não pôde porque estava doente. Foi quando você decidiu que ele merecia um anel de noivado. Um anel de verdade, de metal dourado.
5. A aurora boreal é um rasgão no céu por onde sombras vão dançando de um lado a outro, como as seções de uma lagarta brilhante. Você sabe que é um fenômeno vindo do centro do sistema solar. Por isso quer dar essa visão de presente para o namorado que segura sua mão enluvada quando vocês descem do ônibus. É difícil andar no chão fofo de metros e metros de neve, mas vocês aceitam a estranheza de caminhar dançando desajeitados no terreno singular. Há um quê de andar na lua. Vocês aprendem a fazer uma fogueira no gelo. O guia conta histórias de caça às luzes e revela que nasceu não ali, na terra dos indígenas locais, os sami, mas lá longe na Malásia. Que foi por causa de uma foto no Facebook que ele veio parar ali, encantado com as luzes. Você e o namorado tomam chá de amora-branca-silvestre, a única frutinha que nasce nas voltas do ártico. Tiram fotos contra o céu estrelado, identificam constelações. Trocam beijos e você entende, mais uma vez, que qualquer aventura é sobre como você se sente no meio dela. Você sente amor.
6. No passado, na companhia do covid, a aurora boreal continuou aparecendo por mais três noites na janela do seu quarto em Estocolmo, esse lugar que já é considerado sul demais para o círculo polar ártico. Foi olhando para ela, pelo vidro da janela, que você escolheu as alianças.
7. Você e o namorado não tem alianças nos dedos, vocês tem brincos nas orelhas. Brincos que combinam. E embora tenham viajado 1326 quilômetros juntos só para ver a aurora boreal nesta noite, ela não aparece. Vocês não lembram mais quando foi que pediram-se em casamento, pois o pedido acontece a todo o momento que estão juntos. Nem todo casamento consiste de casa, contas e alianças. O guia reune outros turistas no meio da clareira e bota uma música bizarra para tocar. Um grupo de franceses se junta e eles começam a cantarolar e uivar baixinho. Assim como no imaginário popular brasileiro (e na vida real também) o indígena faz a dança da chuva, agora você aprende que há uma canção da aurora. Uma sensação de vergonha-alheia toma seu corpo. Você já não sabe mais se quer estar ali, então serve mais um chá e tenta olhar para outra coisa, não para o céu, mas para as árvores. Deseja ver a raposa dourada de novo mais do que ver as luzes do norte. Uma comoção surge entre o guia e os franceses. Eles gargalham e comemoram. A aurora boreal aparece por dois longos segundos no céu. Você não olha para cima. Você olha para ele enquanto ele olha para cima. O namorado. E o ama como amou e ama o noivo (que agora é marido). E percebe a sorte que tem. Então o namorado reclama que não vê nada no céu, deve ser uma luminosidade que só as câmeras captam (ele está certo). Você ri e não fala nada. Você tem tudo. E não precisa ver para saber, o riso dos franceses de repente é a melhor música do mundo.
8. Você está presa na sua natureza.
9. O povo sami chama as luzes do norte de guovssahas, a luz que você escuta. Eles dizem que a raposa agita a cauda e provoca as luzes, trazendo os espíritos para dançar. Teoricamente não se deve dançar de volta para a aurora, pois chamar atenção dos espíritos provoca alterações drásticas no clima.
10. No dia seguinte você e o namorado ficarão presos em uma nevasca esperando um trem por seis horas dentro de um salão decorado com obras de arte sami. E você vai ajoelhar e entoar o mantra de Ganesha no banheiro da estação turística, na esperança que os caminhos sejam abertos, como um último recurso, como o ateu faz promessas caso a providência divina aconteça.
11. Você está presa na natureza. Você amou, ama e amará. Tudo ao mesmo tempo.
Expediente
Tinha tanta coisa para falar com vocês, mas me cansa só pensar. Voltei para o trabalho em horário comercial 100%, tenho aulas na universidade, estou escrevendo trabalho de conclusão, escrevendo ensaios em inglês, traduzindo, organizando mais uma edição do evento de newsletters, fechando o texto de um livro que quero publicar ainda esse semestre, preparando um especial para os apoiadores (que eu queria ter publicado em fevereiro, mas paciência) e tentando ter uma vida social e afetiva decente.
Vocês sabem que eu posso rarear as edições, mas sempre estou aqui. Qualquer coisa, mandem email.
Infelizmente hoje não tem “satélite de recomendações” e “nem sinal de vida”, mas recadinho especial:
!!!SAVE THE DATE!!!
5 e 6 de julho. Teremos mais uma edição do evento online para quem lê newsletters, O Texto e o Tempo!
Aguardem mais informações pelas redes do evento e pelos palestrantes de outras edições.
Para quem gostou do relato pessoal, fica a indicação da minha série sobre o Caminho de Santiago, de 2022.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
🔭
Que bom que no meio da vida toda, esse texto aconteceu ✨️
coisa mais linda esse texto