Confissões de um retiro de escrita falido
Crônica sobre exposição, Olivia Sudjic e feminismo
TEMPO DE LEITURA: 8 minutos.
Não há ideia mais assustadora no mundo do que um retiro artístico. Um período mágico, um sonho, em que todos os pormenores da vida estão longe ou muito bem resolvidos — por outra pessoa — e o foco é a produção de uma obra de arte. A ideia me causa uma micro vertigem. Pouco mais de seis anos atrás, logo que comecei um emprego novo aqui na Europa, cheguei em casa aos prantos depois de um dia absurdo de reuniões. Em casa, meu companheiro perguntou do motivo do choro e, na falta de explicações, concluiu que a apresentação do projeto que eu iria propor foi negada. Eu o corrigi imediatamente: não, minha ideia foi aprovada por todo mundo, de primeira. Frente sua confusão, precisei explicar que isso nunca havia acontecido antes. Nunca, nunquinha, em mais de dez anos de carreira. No Brasil, qualquer ideia nova que eu trouxesse para o trabalho teria que enfrentar uma sabatina de provações. Desde chefes me ignorando, pessoas questionando minha capacidade técnica e até colegas de trabalho homens se apropriando da ideia. Sabe o que era mais chato? Quando eles faziam isso sem perceber, acreditando piamente que foi uma voz na cabeça deles que sussurrou a solução, e não uma mulher de carne e osso, esgoelando-se para não ser interrompida no meio do raciocínio, que cantou a bola. Por causa desse passado, eu chorava. Porque aqui eu havia me preparado ao longo de uma semana para apresentar um projeto em língua estrangeira, esperando que ele fosse dispensado, questionado ou ignorado, com a fé de que lá pela terceira tentativa talvez eu conseguisse algum apoio. Tomei cuidado de documentar tudo direitinho, caso a proposta fosse magicamente apresentada por outra pessoa em um futuro próximo. Mas para o meu espanto, a ideia foi aceita de primeira; eu precisei falar apenas uma única vez e não fui interrompida em nenhum momento. Meu chefe designou uma equipe inteira para implementar a proposta ali, no ato. Percebi que dali para frente, não teria nada mais me impedindo. Eu estava livre para ser dona e proprietária da minha voz e das minhas ideias. Aquele monte de obstáculos sexistas pareciam ter sumido. E eu chorei de medo e felicidade. Na hora eu não tinha elaborado o motivo, mas chorava um pranto engasgado de anos. Chorei porque estava acostumada a ser calada repetidamente.
A ideia de retiro de escrita me causa mais comoção ainda. Sem as amarras do cotidiano e o compromisso com o resto da vida, tomar para si a como função exclusiva criar uma obra é intimidante. Ter tempo para ser tomada pelo espírito criativo — que é uma grande falácia do imaginário coletivo — parece mais um filme de horror do que uma comédia romântica em que o par final sou eu e um livro pronto. Eu sei que é reclamar de barriga cheia. Mas o desconhecido dá medo. Não ter desculpas dá medo. A liberdade é assustadora.
Validação
Às vezes estamos lúcidas demais para entender que não estamos no ponto. Está na moda falar que nós precisamos “nos autorizar” a escrever, pintar, gozar, desfrutar, fazer, acontecer. Sei que essa auto-autorização vem do sentimento comum de que não podemos tais coisas, de que há tanta gente melhor que nós lá fora fazendo tudo isso, há muito mais tempo, com muito mais habilidade. Mas todo mundo um dia começou e começou mal (não se engane com a falácia dos gênios). Para nós, mulheres, e outras tantas minorias, esse início safado é especialmente cruel porque raramente somos ouvidas ou levadas a sério, o que aumenta exponencialmente a sensação de estar sempre tropeçando no início. Ou mesmo antes dele, tropeçando no desejo.
Se o desejo mora nesse lugar inóspito de uma realização plena, perfeita, o aprendizado do dia a dia, na tentativa e erro, se torna invisível frente ao que sonhamos como reta final. Mas também, se em toda tentativa encontramos obstáculo atrás de obstáculo, é difícil não desistir antes de sequer construir confiança suficiente para dar passos maiores. É necessário buscar lá dentro, lá no fundinho, forças para se apossar do desejo e bancá-lo. Dia após dia, obstáculo após obstáculo.
Mas quem é essa pessoa sem os obstáculos? Por que eu tenho medo dela?
Exposição
A britânica Olivia Sudjic se debruça sobre o que há poucos anos chamávamos de “síndrome da impostora” em seu livro-ensaio Exposure. O ensaio é fruto de um retiro de escrita que ela fez na Bélgica, prestes a completar 29 anos. Olivia pergunta-se porque é tão difícil escrever e explora o medo da exposição como ponto de partida para falar de machismo, individualismo e a tóxica narrativa do herói. Ela fala que a ficção é um lugar feliz para todas nós, pois é o terreno da fantasia e da liberdade, onde nos sentimos contentes em aceitar a voz narrativa. Ao mesmo tempo, estamos acostumadas a entrar na cabeça de um homem protagonista com certa facilidade. Mas o oposto não ocorre. Homens tem objeção, ou mesmo uma relutância cognitiva, em se aventurar pelo ponto de vista de uma protagonista mulher. Se, antigamente, a maioria dos escritores eram homens, quando as escritoras começaram a receber atenção e serem mais publicadas, os caras se depararam com uma dificuldade imensa de engajar no “eu” feminino.
Quando o modelo universal de ser humano é um homem branco de classe média, qualquer outra perspectiva aparece como um contraste, como um grande “outro”. Historicamente, as pessoas tem uma resistência em sentir a experiência do outro, de entrar na mente daquele que destoa da norma, ou mesmo botar-se em seu lugar. Sobre isso, Olivia comenta (tradução minha):
“Mulheres escrevendo sobre elas mesmas, usando sua própria voz, é uma ideia radical por si só. Pelo simples fato de que elas são frequentemente reprimidas ou desconsideradas quando fazem isso. [...] No seu livro sobre divórcio, Rachel Cusk sugere que uma feminista é ‘uma autobiografista, uma artista do eu. Ela age como uma interface entre privado e público, como mulheres sempre tem agido, exceto que a feminista faz isso ao contrário. Ela não facilita: ela contesta. É uma mulher virada ao contrário.’ Quando vira-se o corpo ao contrário, a pele não oferece mais proteção.”
Ela é uma mulher virada ao contrário. Quando nos expomos através da arte, principalmente através da escrita, estamos colocando nossa pele para fora, para o escrutínio de leitores domesticados por uma literatura historicamente dominada pela voz dos homens. É claro que vamos sentir medo. Estaremos expostas.
Coragem
Esses tempos, um dos meus namorados comentou que eu publiquei uma edição aqui da newsletter em um tom urgente, como se eu tivesse escrito muito rápido. Ele me perguntou se tinha sido realmente assim. Eu gostei da pergunta porque pude compartilhar melhor sobre o trabalho que é escrever. Respondi: usei uma certa técnica, em que diminuo as pausas (vírgulas, pontos, travessões) e uso palavras mais apressadas, para que o texto emule uma pessoa pensando muito rápido, como se estivesse agoniada. Mesmo um texto de tom pessoal, contando algo muito simples do cotidiano, precisa ser trabalhado. Nenhum texto chega aqui cru, do jeito que saiu o primeiro rascunho. Existe intenção, narrativa e muita técnica, mesmo em um texto de cunho pessoal. E talvez seja essa a ilusão sobre a escrita autobiográfica ou autoficcional, gêneros comumente atribuídos a escrita das mulheres; de que não dá trabalho, de que não se tem técnica.
Como eu poderia me colocar num lugar de vulnerabilidade tão grande sem calcular minimamente como me exponho?
Retiro de escrita
No final de junho, comprei a ideia do retiro de escrita. Mas resolvi fazer isso aqui em casa (modo econômico) por uma semana, em um período de férias. Como eu não consigo escrever se tiver tarefas domésticas por fazer, combinei com meu companheiro que ele cuidaria de todas as tarefas sozinho (no dia a dia normal, nós dividimos tudo meio a meio) e eu só escreveria. Um sonho. Na verdade, é a vida comum da maioria dos escritores homens, sabemos. Naquela semana, além de trabalhar normalmente, ele limpou, lavou louça, cuidou de todas as necessidades dos animais, lavou minhas roupas, me manteve alimentada e garantiu o open bar de café passado.
Eu escrevi? Muito pouco. Trabalhei na estrutura de um romance, editei ensaios e rascunhei o desabafo que abre essa crônica, sobre minha história no ambiente de trabalho e a comparação com o retiro de escrita. Ter tempo só para o texto foi assustador. E desconfio que sempre será para a maioria das mulheres, simplesmente por falta de costume.
A ideia de se retirar da vida mundana para escrever é um luxo. E implica na crença de que escrever é uma atividade sagrada e especial. A maioria de nós nunca vai ter tempo, dinheiro ou sorte/disponibilidade de ser bancada por alguém para fazer isso. O grosso da escrita precisa ser feito entre tirar o coco do cachorro para fora e recolher as roupas do varal; no intervalo de almoço do trabalho; antes do dia raiar, ou muito depois que o sol já se pôs e o resto da casa dorme. Podemos nos retirar por um final de semana ou dois, quem sabe, para focar, na melhor das situações. E é isso.
Sinto que a escrita não precisa exatamente de um retiro. Ela precisa de liberdade. E de disposição — talvez um pouco de neurose também — para descobrirmos quem podemos ser longe dos obstáculos.
Qual é o monstro que se revela quando reviramos a pele do corpo?
Satélite de recomendações
Nos últimos dias essa plataforma andou agitada e o assunto CRÔNICA rendeu reflexões ótimas e textos muito divertidos. Confiram:
a
provou para todo mundo que A crônica está viva e ela mora no Substack;a
falou sobre a necessidade de Fazer a própria festa;a
comentou que Tá todo mundo tentando: essa coisa de crônica;o
demonstrou alguns Sofrimentos Classificatórios;e eu escutei o excelente podcast Desver pela primeira vez (produção de Giu Alles e Gustavot Diaz). Recomendo o episódio Processos criativos na escrita, em que um dos participantes conta sobre uma experiência positiva em um retiro de escrita.
Se você se identificou, curtiu ou pensou um pouco mais além com esse texto, considere compartilhar nas redes sociais ou com as pessoas que você gosta. Divulgar o texto ajuda muito o meu trabalho e faz as palavras irem mais longe ❤️.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Que texto (pra variar!)... Sabe, durante anos eu me entendi como uma pessoa noturna, das madrugadas mesmo – o que é incoerente com tudo que estudo sobre saúde e também algo que quero mudar. Hoje vejo que não se trata de ser noturna, é que só a madrugada tem essa tal de liberdade...
Amei o texto!