Consumo, prazer & tortura
A prateleira de livros não-lidos enorme e a gente passando o cartão na feira da USP 🤡
No primeiro encontro, celebramos a chegada da escuridão. No segundo, brindamos o direito a mediocridade. E no terceiro, a inércia de nossos úteros.
Voltar a frequentar bares e ver pessoas depois de quase dois anos tem causado efeitos colaterais adversos nos corações. É claro que nada voltaria a normal. O que estávamos pensando? Nunca mais seremos os mesmos.
Atenção: o texto abaixo pode conter erros de português e digitação.
“Ninguém ama sozinho, ninguém odeia sozinho”.
TRUFFAUT, Fraçois. O Último Metrô, 1980.
Livros & roupas
O consumismo nos tomou tantas coisas a essas alturas que o próprio ato de consumir já é uma das misérias do dia. Eu estou bem ressentida com alguns aspectos desse sofrimento contraditório.
Provadores de roupa em lojas de departamento sempre foram cubículos de tortura para mim. É uma vida me sentindo inadequada dentro dessas pequenas câmaras. Às vezes chorando porque o zíper de um certo vestido não fecha até o final e aquele é o maior número da peça disponível na loja, ou porque a camisa de botões é perfeita, mas os botões não fecham sobre o meu sutiã.
Com o tempo, adquiri o estranho hábito de sair para comprar uma roupa que eu precisava, não encontrar nada, e acabar o dia gastando o dinheiro reservado às roupas com… livros. A paixão pela literatura se mistura facilmente com o ressentimento do provador de roupas. Compenso uma tristeza, uma angústia, com algo que me traz prazer imediato. Uma mistura bombástica a longo prazo.
Pelo menos os livros nunca me desapontaram. O prazer em andar pelas prateleiras das grandes redes de livrarias, cheirando livros novinhos, os olhos se enchendo no deleite da arte fantástica das capas pingando cor e promessas. Ou mesmo o prazer em desbravar labirintos nos tradicionais sebos, com as pilhas de livros atulhadas ameaçando cair sobre a cabeça, aquele cheiro doce de livro velho, o lencinho antecipando o sorriso seguido de espirro.
Sentir o peso do livro, abrir as páginas para espiar as palavras como quem abre a fresta de uma porta esperando nada mais do que sorte. Sorte em encontrar palavras que justifiquem o tesão que a capa, o título e a lombada primeiro me despertaram. Livros são bons objetos de consumo. É uma prova de adequação e pertencimento; o oposto das lojas de roupa. A experiência é prazerosa do início ao fim.
Questão de classe?
Ainda na adolescência, os primeiros bens de consumo que adquiri com meus primeiros salários foram livros. Para mim, melhorar de vida era ter condições de comprar os livros que eu queria sem precisar esperar meses economizando moedas. Ou depender do acervo das bibliotecas públicas (que dificilmente tinham os lançamentos que me interessavam). Lembro de uma vez que conheci ao vivo uma amiga de internet, ali pelos meus 14 anos, e ela me contou que ganhava 100 reais de mesada dos pais todo mês.
Eu fiquei semanas pensando em todos os livros que eu poderia comprar com aqueles 100 reais e talvez tenha finalmente, pela primeira vez na vida, sentido raiva por não ter nascido rica (a menina que eu conheci não era rica de verdade, mas para os meus padrões, ela era sim).
Trabalhar na adolescência para ter as coisas que eu queria foi o início de uma relação perigosa entre acesso e consumo.
A alegria depois de pagar as contas estava sempre me esperando em alguma livraria ou sebo.
Mas e a pilha de leituras pendentes me aguardando em casa em silêncio? Pois é.
Não demorou muito para eu virar mais uma vítima do prazer de comprar mais um livro ou revista, com uma legião de calhamaços e periódicos ainda não lidos me aguardando em casa.
Essa imagem me gera uma angústia que interrompe o prazer em adquirir livros novos antes mesmo de eu sequer chegar em casa.
As nossas cópias
Praticamente tudo que possuímos é uma cópia.
Todo texto que temos nas prateleiras é uma cópia. Toda roupa que vestimos é uma cópia. Toda página de internet que abrimos é uma cópia. Esse texto aqui que você está lendo é uma cópia.
Provavelmente as únicas coisas que você identifica como não-cópias são items, em maior ou menor escala, artísticos. Um desenho de criança, uma anotação num post-it, um artesanato, sei lá. Provavelmente o poster do artista do instagram que você tem na parede é mais uma cópia de uma bela ilustração.
Livros são obras de arte. E como muitas obras de arte, eles também são produtos da reprodução em massa nesses tempos de super industrialização.
Humanos no século XXI são donos de coleções de cópias.
Os livros não-lidos
Nesses últimos dias eu vi muita gente falando da alegria que sentem com a vinda da famosa feira de livros da USP para o formato online - assim, pessoas do país inteiro participam dessa festa de descontos livreiros - e, ao mesmo tempo, o peso da culpa por ainda terem muitos livros para ler em casa enquanto compram mais e mais.
É desse pequeno desconforto que falo quando digo que o consumo virou a própria miséria.
Possuir um livro não é o equivalente a consumir seu conteúdo. Nós sabemos disso. Mas a adrenalina do ato da compra e do download, não.
A tortura é uma mão invisível nos punindo pelo prazer de possuir algo.
A angústia sobre a massa de dados não-lida em nossos computadores e prateleiras é a consciência de que há algo ocupando espaço sem nunca ter sido corretamente desfrutado. Mas o que seria esse desfrute, ou esse consumo? Isso não é uma pergunta retórica.
Quando a gente termina de ler o texto, a cópia vira conhecimento.
Me pergunto se é estranho pensar que conhecimento pode ser consumo também. (Estou perdendo o fio da meada?)
E que uma cópia pode adquirir autenticidade ao virar mais uma parte do nosso repertório, que é sempre único.
Seria justo dizer que quando compramos ou fazemos download de um conteúdo novo, a sensação que temos ao possuir aquele conteúdo é de que já estamos consumindo-o.
Parece uma enganação.
Será?
De novo, é uma pergunta honesta. A nossa massa pessoal de conhecimento não está indo a lugar algum enquanto não estamos olhando.
“Comprar coisas melhores não é um substituto para as duras escolhas políticas que as sociedades precisam fazer sobre limitar o consumo e uso de recursos e encontrar um substituto para a muleta psicológica do consumismo.”
ASCHOFF, Nicole. O fetiche do livre-mercado. Revista Jacobin. 2019. Link.
Obs.
Sim, eu vou falar de bibliotecas em lugares mais animados da internet em breve. Também devo me debruçar sobre o ato de se despedir de livros. Aguardem notícias por aqui ou pelas redes.
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Jabá
O Incêndio na Escrivaninha, podcast sobre a vida e os livros, está de volta em nova temporada, com o mesmo elenco. Nesse quarto ciclo, eu divido o plaquinho sonoro com Ana Rüsche e Thiago Ambrósio Lage para falar sobre coleções.
Por enquanto, nos próximos dias sai o nosso episódio entressafra, falando de um tema que produz muitas tretas no mundo da literatura. Para ouvir o espisódio assim que cair na rede, nos siga no Twitter, Instagram ou Telegram.
Dica de episódio passado: nosso papo doido com a imperdível Aline Valek, sobre a década de 2020 “Ilusão, espaço e tempo”.
E… por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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