Crônicas da imigração: o gado estrangeiro
Só agora, depois de 6 anos morando na Suécia, me sinto confortável para começar a falar abertamente sobre imigração.
Não é que eu não tivesse opiniões antes. A gente sempre tem. Mas eu queria falar da minha experiência com um olhar mais generoso, mais plural, e fui lá ler uns livros de história, uns artigos, ouvir outras pessoas, etc, até que comecei a me sentir mais a vontade com o assunto.
Dessa vez, abro um pouco sobre o que é lidar com uma população tão diferente da minha durante esses tempos tão delicados.
Atenção: o texto abaixo pode conter erros de português, escorregões e breguices.
O gado estrangeiro
Aqui em Estocolmo são os taxistas e uberistas, pagos pelo governo, que entregam os kits de teste PCR para as pessoas que não tem carro (meu caso) ou que não podem dirigir até a coleta drive-in.
Na última terça-feira, o taxista veio trazer o kit de coleta para o teste do meu companheiro e quem abriu a porta para receber fui eu. Saí para fora do apartamento e parei na porta do prédio. Havia um táxi estacionado com o farol aceso e, ao me ver, o motorista saiu apressado lá de dentro. O homem me surpreendeu: usava máscara — como eu — e logo jogou o kit de coleta no chão nevado aos meus pés. Catei o saquinho plástico do chão e agradeci. Ele perguntou se o teste era para meu marido. Assenti. Seu sotaque era de quem aprendeu sueco depois de adulto — como eu — e pensei que era por isso que o homem usava máscara. Teve tempo de ser outra pessoa fora daqui e aprendeu uma ou outra coisinha diferente pela vida — como eu.
Os outros motoristas antes dele nunca usaram máscara, assim como toda a população da Suécia.
Ontem, pleno domingo, veio um motorista novo trazer o teste. Nunca é o mesmo. Esse era bem mais novo, falava sueco como um nativo e não usava nenhum tipo de proteção. Me entregou o kit na mão e exibiu um largo sorriso, que eu retribuí por baixo da minha PFF2.
O teste dessa vez era para mim. Por isso, lamentei que o menino não usasse luvas para botar o plástico na minha mão, pois houve contato na sua expressão de cordialidade. Depois pensei em todos os infectados, provavelmente sem máscara, para quem ele sorriu e entregou kits de plástico com a mão desprotegida.
Essa pandemia não vai acabar nunca.
Pensei no meu pai. O motorista de terça, além de mais velho, tomava medidas de autoproteção; coisa que meu pai faria sem pestanejar sob as ameaças nervosas de minha mãe. Pois meu pai é taxista. Sempre procuro um traço dele em todos os outros que topo pelo mundo. O carro dele é vermelho, como todos os táxis de Porto Alegre. Talvez por isso, por dirigirem carros sanguinolentos, coléricos, os taxistas da minha cidade sejam tão inflamados e briguentos (a fama diz que também são conversadores, mas meu pai é quieto como um terapeuta).
O motorista mais novo me fez pensar nos filhos que não tenho, mas que talvez um dia tenha. Pensei no seu rosto retinto, no nome estrangeiro e seu completo descuido. Estremeço simbolicamente por dentro ao pensar nesse descuido onipresente que infecta os jovens. Mas que nesse caso, aqui na Suécia, está em quase todo mundo.
A grande confusão sueca vem de uma cultura de pessoas que confiam plenamente nas instituições públicas. Governos incapazes são apenas os corruptos, é o comentário geral. Fácil entender essa postura quando um dos maiores escândalos de corrupção do páis consiste em um deputado que usou as milhas do cartão de crédito do governo para comprar amendoim e bilhetes de trem, em 2017.
“Para alguns, o epidemiologista-chefe da Agência de Saúde Sueca, Anders Tegnell, é um defensor da liberdade e da sensatez cuja antipatia por confinamentos permitiu que os suecos continuassem esquiando, fazendo compras e jantando fora sem máscara, enquanto no resto da Europa a imposição das regras restritivas da pandemia chega a envolver ação policial.
Para outros, é um renegado temerário, responsável pela perda de muito mais vidas do que necessário, que colocou a Suécia no topo das listas de contágios de covid-19. Até mesmo o rei Carl Gustaf expressou consternação diante da taxa de mortes.”
(Trecho da matéria Liberdade sueca está matando vidas na pandemia?, da versão brasileira do jornal DW, de 22 de abril de 2021)
Tenho a sensação de que é essa fé cega nas instituições que levou o país a ser o que é hoje: rico, limpo e tranquilo. Como uma sucessão de golpes de sorte. É engraçado como antes da pandemia eu me perguntava o que aconteceria na Suécia se alguma autoridade do governo decretasse uma lei estapafúrdia. Se todo mundo ia seguir cegamente as instruções ou se resistiriam frente a falta de coerência.
O covid me trouxe a resposta a essas suposições. Veja só, vivemos em tempos tão absurdos que nossas suposições mais malucas se transmutam em vida real.
Como seguir acreditando que fantasmas não existem quando os temores de minha mente se materializam o tempo todo ao meu redor?
Penso nesses meus filhos-fantasmas, esses descendentes que moram no mundo das ideias e por isso mesmo são perfeitos. Se materializados, o quanto se contaminarão por essa cultura estrangeira perigosa, assim como o motorista jovem?
Imagino que protegê-los dessa contaminação é uma ilusão. Assim como meu pai tentou a todo custo me proteger de tantas ideias e mesmo assim o mundo me infectou com uma porção de coisas que ele abomina.
No ano retrasado, quando esse pesadelo coletivo explodiu na nossa cara, cheguei um dia no escritório usando máscara. As meninas da recepção riram. Aguentei os olhares julgadores e os cochichos no metrô, logo aqui nesse país onde apontar o outro é considerado falta de educação. Cheguei em casa e li uma reportagem sobre um par de pessoas “de aparência asiática”, imigrantes como eu, que foram espancados em uma estação de metrô. Seu crime: usavam máscaras.
Me acostumei a perambular pelos supermercados com o nariz e a boca tampados, sozinha, surpreendendo as pessoas que de repente se lembravam que havia uma grande pandemia acontecendo. Se até então nunca tinha sido olhada diferente por ser imigrante (eu sei que navego por um privilégio na esfera da aparência, por ter a pele branca), a máscara me marcou como diferente. Durante 2020 levantou-se uma sensação de que apenas imigrantes usavam máscaras. Eles estavam certos.
Não foi à toa que a onda nacionalista cresceu horrores na Suécia.
“Funcionários do município de Halmstad, Suécia, recentemente forçaram um professor a remover sua máscara e proibiram o uso de máscaras e todas as formas de EPI nas escolas. O município disse não haver evidências científicas sobre o uso de máscaras, citando a agência de saúde pública sueca. Na época, a orientação da agência afirmava que havia “ grandes riscos ” de que as máscaras fossem usadas incorretamente. Essa orientação foi removida.
Para alguém não familiarizado com a resposta sueca ao COVID-19, essa proibição de máscara pode parecer chocante. Afinal, embora as máscaras não sejam infalíveis, há evidências que indicam que elas ajudam a reduzir a disseminação do COVID-19, especialmente em situações onde é impossível manter distância – como escolas.”
(Trecho da matéria A enorme dificuldade dos suecos usarem máscaras contra o vírus, do jornal O Vermelho, publicada em 8 de fevereiro de 2021)
Em algum momento o uso da máscara em lugares públicos, principalmente os abertos, virou um símbolo de resistência para mim. De autoproteção e de cuidado com o outro também. Mas não era para ser assim. No fim, vou aprendendo que o individualismo e a coletividade aqui tem muito mais nuances do que os anos anteriores me mostraram.
Uma coisa curiosa que eu percebi é que entre meus amigos suecos, apenas aqueles que já tinham algum tipo de participação em alguma luta política aderiram às máscaras como os imigrantes. As pessoas trans, os companheiros do movimento antifacista, os conhecidos do partido de esquerda. Sempre pessoas que, de alguma forma, já se sentiam mal com o status quo antes de tudo isso acontecer.
Tenho dificuldade de conversar sobre isso com as pessoas que não moram aqui, porque as conversas tendem a morrer numa certa leviandade, às vezes não dá tempo de falar direito. A maioria simplesmente chega à conclusão de que vivo em um país de merda.
Acredita-se que o norte da Europa é um paraíso sem defeitos e se eu falo uma coisa ruim, automaticamente todo o resto de bom se dissolve. Ou quando eu falo das coisas boas, as pessoas acreditam que não existem as ruins. É complicado porque as conversas se tornam fonte de opiniões absolutas.
Não existe lugar sem defeitos. Assim como não existe território demarcado no planeta Terra que seja livre de problemas.
Pergunte o que você quer saber
Em 2022, quero escrever mais sobre a experiência de imigração aqui na newsletter.
Vocês podem me ajudar comentando no post pelo botão abaixo ou mandando alguma pergunta no meu CuriousCat (que aceita perguntas anônimas também, mas peço que se mantenha dentro do assunto de imigração, Suécia, adaptação, língua estrangeira, etc).
Jabás & recomendações
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Até fim de fevereiro devo parir os posts sobre organização pessoal e outras coisinhas mais.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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