Crônicas da imigração: uma vida melhor
Tá chegando gente nova por aqui. Para quem não me conhece, eu sou a Vanessa. Sou programadora por profissão e escritora por… profissão também. Nasci em 1990, em Porto Alegre, RS, morei 5 anos em São Paulo, SP, e hoje sou imigrante. Moro em Estocolmo, na Suécia, desde julho de 2015.
Muito prazer. :)
Atenção: o texto abaixo foi escrito de uma vez só, numa reflexão muito pessoal. Pode conter erros de gramática e digitação.
A promessa da vida melhor (para quem?)
Li na internet que se você trabalha com programação, sair do Brasil não vale a pena; a melhor opção seria trabalhar remotamente para uma empresa (americana ou europeia) que paga em moeda estrangeira. Que com um salário bom, na conversão para o real, você teria uma vida de magnata, poderia ter uma casa ou apartamento de luxo, num lugar com porteiro e segurança 24h, carro bom, empregada doméstica, babá, escola particular, clube e sei lá mais o quê. Seria o fim das preocupações e um ingresso de longo prazo a uma vida de usufruto e privilégios. É como se fosse impossível imaginar uma vida realmente boa sem idealizar a servidão do outro, subindo na hierarquia social e adquirindo bens.
A tal vida de magnata parece-me baseada em evitar os perrengues pelos quais a maioria das pessoas passa.
Mas.. e aí?
Terceirizando o risco
Desde que mudei para a Suécia, passei os primeiros 4 anos sem nunca pedir uma tele-entrega de comida em casa. Primeiro, porque nunca realmente precisei; segundo, porque nunca foi algo comum por aqui. O “normal” em Estocolmo era telefonar para a pizzaria do bairro, pedir a pizza e você mesmo ir até lá buscá-la. Existiam sim serviços de entrega, mas custavam o valor da própria pizza, quando não até mais caros. Não valia a pena. Numa visita ao Brasil, em 2018, eu instalei um app desses de pedir comida e não sabia nem como usá-lo na primeira vez que abri (me senti uma camponesa do século retrasado). Arranquei o app do celular assim que peguei o avião de volta para a Europa.
Foi no início da pandemia que isso mudou radicalmente. Naquelas primeiras semanas caóticas, apelei para serviços de entrega em casa (tanto para supermercado quanto para ocasionais refeições). Para minha surpresa, o valor desses serviços tinha caído drasticamente. De repente, pedir comida tinha ficado mais acessível. E aos poucos, virou quase um hábito.
Eu não queria me expor ao mundo lá fora no meio de uma pandemia da qual se sabia tão pouco. Então eu literalmente comecei a pagar para que outras pessoas tomassem esse risco por mim.
É claro que esse raciocínio não aparece no dia a dia de quem contrata o serviço de entrega, e nem de quem trabalha fazendo o serviço. O entregador cobrou pelo trabalho. O contratante pagou e recebeu a comida. No final do dia, todo mundo trabalhou honestamente e garantiu o seu. Caso encerrado.
Mais ou menos. Esse tipo de relação fica muito aparente quando penso naquele ideal de vida boa que se vende para quem trabalha com programação. Esse lance brasileiro de garantir o seu conforto, segurança e educação através do poder aquisitivo — e da exploração dos outros. Pagar pelo seu bem-estar é delegar responsabilidades suas para outra pessoa.
Mas afinal, qual é o problema?
A cobra que morde o rabo
Conversando com pessoas classe média que moram no Brasil, eu noto que a rotina imposta por suas profissões torna impraticável que elas sejam responsáveis por coisas básicas como: limpar a própria sujeira, cozinhar a própria comida e até sair para passear com o próprio cachorro. Para muita gente, terceirizar essas coisas não é um luxo, mas uma necessidade. É claro que essa ideia de necessidade deve ser sempre contestada, mas prefiro não entrar nesse mérito agora (se você estiver afim de se debruçar sobre isso, recomendo começar por esse texto aqui).
No universo das cidades grandes, o deslocamento entre moradia e trabalho pode tomar conta da maior parte do tempo livre das pessoas, um problema que cruza muitas camadas da classe baixa à classe média brasileira. A disponibilidade do corpo e da mente para os empregadores também adiciona uma preessão enorme nesse dia a dia do trabalhador, gerando essa complicada cadeia de serviços. Um ciclo sem fim.
Seria muito fácil para mim, que moro num país com 3 anos de licença parental garantidas, onde a qualidade de vida é priorizada sobre o trabalho (as canetas costumam cair às 5 da tarde, ou às 3 mesmo, para quem tem filho pequeno) e onde o transporte público funciona bem, julgar meus amigos no Brasil, um país onde as pessoas vivem numa sociedade que não garante esses mesmos direitos. E não, não vou chamar isso de privilégio; é direito. É fácil dizer que não tenho nem diarista em casa quando não há a mesma pressão (pessoal e social) para ter um apartamento perfeito, brilhando limpíssimo o tempo inteiro.
O contexto desse lugar onde moro agora permite que as pessoas atendam suas próprias necessidades básicas sem depender tanto da terceirização - ou exploração - do trabalho dos outros.
Uma vez conversávamos entre brasileiros aqui e alguém perguntou qual era a melhor coisa em morar na Suécia. A questão da segurança foi unânime, a maioria das pessoas disse coisas como “poder usar meu laptop no transporte público” ou mesmo “andar na rua tarde da noite, em qualquer lugar, sem medo de morrer”. Uma amiga muito querida ficou chateada porque eles falaram coisas muito burguesas. O comentário dela me atravessa até hoje. Embora eu mesma não tenha expressado minha opinião na hora, eu compartilho com os outros o alívio de poder transitar por todos os lugares a qualquer hora do dia ou da noite, me preocupando apenas se estou bem agasalhada. Mas eu entendi a indignação dela.
Uma outra coisa que eu li pelos cantos mais contraditórios da internet foi que brasileiro na Europa descobre que não vai viver nenhuma vida de luxo, que lá ele é como qualquer outro. Sempre que essa questão surge, eu percebo que ela não é para mim. Eu não sou esse brasileiro; mas sei bem quem ele é. Você sabe?
A minha intenção jamais será culpabilizar as pessoas individualmente por suas escolhas ou por suas origens. A maioria das coisas que penso sobre consciência de classe e exploração já estavam comigo antes mesmo de eu pisar aqui na Gringolândia. Mas pensar naquele texto que li, sobre “ter uma vida de magnata no Brasil”, me entristece. Esse texto me foi enviado por uma pessoa que viu em mim a possibilidade de ser esse magnata, como se eu estivesse sofrendo por ser uma “comum” aqui no norte da Europa quando poderia - por conta da profissão de programadora - ter uma vida melhor(?) no meu país.
Eu sei que existem outras experiências de imigração bem diferentes da minha, tanto aqui na Suécia quanto em outros países. Não estou aqui para defender a minha experiência, tampouco olho para ela como universal.
Mas acredito que qualidade de vida não deveria ser uma responsabilidade individual. Ninguém deveria depender da exploração direta de outras pessoas para ter o mínimo de dignidade para viver. E ninguém deveria precisar ser explorado, ou abrir mão de sua própria subjetividade, para permitir que outros vivam suas vidas de pequenos magnatas.
Pequena observação: existem muitas variáveis que tornam um país diferente do outro. Muitas mesmo — população, território, história, cultura, política. Não preetendo passar pano para as grandes economias europeias, cujo bem-estar social é também consequência da exploração de países mais pobres (como o Brasil) por séculos. Esse papo rende uma newsletter inteira num futuro próximo; só quero deixar claro que não estou ignorando-o, mas que esse tópico específico merece um texto melhor trabalhado, só para ele.
Jabás e recomendações
Para quem acompanhou a treta do Spotify essa semana, recomendo que escute um episódio do podcast Não Pod Tocar, que trata do assunto com a profundidade que ele merece e mais: explica bastante as origens do problema. (E tem uma pequena participação minha hehe).
E para quem está me conhecendo agora, eu também sou podcaster. Gravo programas com certa frequência no time do Incêndio na Escrivaninha.
O último episódio que lançamos foi sobre Enciclopédias (a temporada atual é sobre acervos e coleções). Na temporada passada, fizemos uma viagem pelo tempo e visitamos todas as décadas do século 20 e 21. Segue a gente no Twitter!
“Esse é outro nó bem dado pelo capitalismo: ao realizar um desejo de compra, você reforça a sensação de dependência do seu trabalho.”
“Você sabe quanto custa um motorista particular? Ele não diz nada. Claro que você não sabe, nunca botou um centavo nesta casa. Mas criei a nossa filha. Você acha pouco? Está cheio de gente que cria filho, lava roupa, trabalha fora e ainda vende Avon. Você faz isso?”
No mais, sobre as contradições e disputas de classe no Brasil, recomendo um livro de ficção que li recentemente: Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso - de onde tirei essas citações que joguei aqui.
“nas poucas vezes que andei sem uniforme, algumas pessoas nem me reconheceram. Não conseguem ligar a babá com a pessoa. Devem pensar que depois do expediente a patroa esvazia a gente que nem boia e guarda dentro do armário.”
E… por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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