Crônicas de guerra: Precisamos de um deus melhor por aqui
Suécia, 2022. Talvez eu esteja anestesiada com a ameaça de guerra do mesmo modo que um dia fui anestesiada com as atrocidades do Brasil
Estocolmo, Suécia.
Quinta-feira, 17 de fevereiro
Quando estou fazendo alguma coisa que exige grande atenção, a mente invariavelmente acaba vagando para longe em algum momento. Então eu rascunho textos na minha cabeça. Acho que o pensamento é o primeiro processador de texto. Oficina do diabo, etc.
Quinta-feira, 24 de fevereiro
Acordei às 3 da madrugada de sonos inquietos, fiquei parada no escuro olhando para o teto por uma eternidade, até que peguei o celular para olhar o twitter. Já era quase 4 da manhã e a Rússia bombardeava a Ucrânia. Acompanhei tudo até às 6, quando o sentimento esmagador de abandono se tornou insuportável e tomei uma pílula de 3mg de melatonina que me botou para dormir à força.
De tarde, limpei a casa do rodapé ao teto e ouvi podcasts antigos. Não abri o computador o dia inteiro.
Sexta-feira, 25 de fevereiro.
Para quem me pergunta sobre a ameaça de Putin de atacar a Suécia, eu digo que o país tem bunkers em todos os prédios. Mas a verdade é que essa ameaça há muito se tornou o feijão com arroz dos jornais daqui e talvez eu esteja anestesiada com a ameaça de ataques de guerra do mesmo modo que um dia fui anestesiada com as atrocidades do Brasil.
O que uma guerra revela
As palavras acima são pequenos trechos de coisas que anotei no meu diário. Não é nada excepcional. Deixo as análises de política internacional para quem trabalha com isso. Eu as leio, todas que consigo, e guardo minhas conclusões para mim e meus amigos do boteco.
Nos grupos locais de mensagem de texto, os homens todos comentam sobre a OTAN, a falecida URSS, a filhadaputagem dos Estados Unidos e o que diabos a Ucrânia estava pensando.
As mulheres comentam que o preço das coisas no mercado aumentou cerca de 30% de um dia para outro.
A vida continua
O início da guerra não mudou o prazo de nenhum texto e tradução por aqui. Uma amiga muito querida do Rio disse que não consegue sentir nada diferente do que ela sente a respeito da guerra civil brasileira que mata dezenas (talvez centenas? milhares?) de pessoas por dia desde que o mundo é mundo.
Eu queria falar de carnaval.
E de todas as outras coisas que não tenho.
Quem inventou o amor-próprio?
Há duas edições atrás, publiquei uma reflexão que questiona o que é o amor. No dia 17, no meu diário, reporto que acordei pensando sobre como o amor-próprio foi inventado e de onde vem a nossa dependência dele. Ainda que eu entenda que caminhamos com afinco em uma jornada de narcisismo coletivo - como me apontou o camarada Nathaniel num email recente - para onde isso está nos levando?
Parece-me que buscamos uma certa imortalidade. Registramos nossa vida publicamente pelas redes sociais, fazemos mapas-atrais, idolatramos o deus-ciência e destruímos o planeta sem ter a intenção de fazê-lo. Seria esse o sintoma do amor-próprio?
A falência divina em tempos de guerra
Se houvesse apenas uma coisa, só uma, que a gente pudesse usar para questionar a benevolência do deus cristão, a guerra seria sempre o melhor exemplo. E nesse sentido divino, até os deuses antigos, desse politeísmo confortável em que viviam nossos ancestrais, continuam adequados. Marte, Ares, Odin. Quando uso o termo “falência” penso em falo também, o paudurismo que inicia as guerras. Eis aí uma afronta que nunca enfrentamos de verdade.
Há de ter melhores propósitos para esses arrombos marciais dos homens. Há de se retirá-los da posição de líderes. Há de se repensar um modo cortar-lhes as cabeças e os falos, uma revolução salomeica - ou juditiana.
Gênese de um corpo quente
Para imaginar revoluções salomeicas, eu escrevo peças de ficção. Como o meu ebook Gênese de um corpo quente, que conta a história de Sara, uma jovem mulher peculiar que, frente à violência fálica a que o mundo a submete, encontra ajuda e conforto na figura de um demônio.
Em fevereiro, o Gênese completou 1 ano de sua publicação. E para comemorar, o ebook entrou no KU. O programa Kindle Unlimited da Amazon. Para quem assina o KU, o ebook pode ser lido gratuitamente.
Vai lá, leia o Gênese e deixe uma nota ou resenha na Amazon. Você vai fazer uma autora independente mais feliz.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de esperança.
Vanessa Guedes.
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