Enquanto eu perambulava pelas ruas de Lisboa nos dias que antecederam a entrada de 2022, a Ana Rüsche me mandou um link sobre uma livraria portuguesa especializada em poesia. Li o artigo sem atenção nenhuma, selecionando as frases dinamicamente, como se eu fosse um desses bots de leitura automática. Mas na primeira oportunidade que tive, meti todo mundo num carro e fomos lá conferir a livraria Poesia Incompleta.
Atenção: o texto abaixo pode conter erros de digitação e gramática.
Uma livraria nunca é apenas uma livraria em Lisboa
O sol alto, a rua estreita e a ausência de pessoas foram o prelúdio para nossa chegada barulhenta, cortando a paz da vizinhança discreta. Espiar para dentro da livraria era vislumbrar o pedaço de um mistério escuro e colorido. Lá dentro, o chão de madeira se abre no centro, com degraus que levam a gente para um meio-nível abaixo do solo. As paredes guardam livros do chão ao teto e algumas mesas no meio da sala exibem títulos de destaque. No fundo, um palco com uma mesa e uma cadeira, onde provavelmente autores brilharam em noites de autógrafo num mundo pré-pandemia. Nesse primeiro momento, me perguntei “o que será que leva as pessoas a visitarem uma livraria de poesia?”. Não vou me fazer de rogada aqui agora, mas a verdade é que a resposta já estava no meu coração.
Havia apenas uma pessoa lá dentro, o dono da livraria - reconheci pelo cabelo, das fotos do artigo que a Ana mandou - trabalhando quieto numa mesa à direita, próximo a porta. O cheiro fraco de cigarro me fez pensar que, diferente das livrarias de grandes redes, estávamos em um território muito pessoal, quase que uma extensão de uma intimidade a que se permitia ser visitada por estranhos numa tarde aleatória no penúltimo dia útil do ano. O barulho dos nossos pés no chão de madeira me arremessou direto para uma saudade imensa de teatros. Tudo por ali tinha um traço de performance, ainda que os únicos a performar fossem nossos olhos gulosos pela lombada dos livros.
Meu grupelho de quatro pessoas lotou a pequena livraria de bisbilhotice. Nossa curiosidade comia o lugar pelos dedos, percorrendo títulos sem se deter muito tempo em nenhum. A livraria é tão intimista que a sensação era de que entrávamos na casa de alguém. Talvez eu fosse a mais empolgada do grupo, trazia comigo uma violenta fome de língua materna. Eram dois anos sem pisar em nenhum país de língua latina; eu estava enlouquecida. Meu entusiasmo era quase profano, tentava controlar a ânsia em sentar ali no chão e abrir os livros um a um, como se só pudesse desfrutar dos mistérios da língua assim, comendo palavras pelos olhos e arrotando poesia pela boca.
Perguntei ao livreiro se ele poderia me indicar alguma poeta portuguesa que tivesse publicado nos últimos cinco anos. Minha intenção era abrir espaço para saber um pouco sobre a cena local de poesia e puxar papo com o livreiro: se ele trocasse meia dúzia de palavras conosco, eu entenderia que nossa visita deveria ser breve. Foi um raciocínio complexo que culminou nessa minha hipótese, pois ali não era como essas livrarias grandes em que a impessoalidade é um fruto direto de uma relação consumista com os livros. Ali, na Poesia Incompleta, a relação com os livros era outra. Impregnava o ar e as prateleiras; e sua mais vivaz manifestação era personificada na presença simples do dono da livraria. Por isso pensei: se estamos perturbando-o, devemos ir embora logo.
Mas o homem estava disposto. E à medida que sua voz foi retumbando pelas prateleiras, o lugar foi se enchendo de vida. Além de responder minha pergunta do modo mais incrível possível, com nomes, histórias e muita sinceridade, ele também deu espaço para que todos nós falássemos e perguntássemos mais e mais. Os ecos da biblioteca se transformaram numa emocionante conversa. Tá aí uma das belezas de encontrar pessoas-que-amam. Elas podem falar do fruto do seu amor com toda a paixão necessária para que os outros também apaixonem-se.
Quando foi a última vez que as palavras de alguém fizeram você se apaixonar?
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Para quem também quer se apaixonar por poesia
Ler poesia é que nem beijar. Tem gente que encaixa muito bem de primeira, sem esforço; tem gente com quem o negócio não rola de jeito nenhum; e tem gente que num primeiro contato é meio estranho, mas depois a coisa flui gostosa.
Ou seja, a gente tem que passar um rodo nos poetas. Interprete como quiser.
Uma pausa
Amigos.
Naturalmente se eu fosse poeta em vez de gente
isto seria com certeza o tema de uma poesia africana
com meias solas de asfalto nos pés descalços
sapatos por comprar
comida por comer
e muito povo à mistura.
(Trecho de Tema para um possível poema, do moçambicano José Craveirinha).
divorciada do mundo
minha mãe demora
[..]
a cada passo a cada toque
seu corpo diminui
[..]
minha mãe mora na demora
de habitar um mundo inabitável
em que a casca brilha
mas por dentro
a carne é mole requer cuidados
(Trechos de gaia enfraquecida, do livro Bruxisma, da brasileira Pilar Bu).
O que mais gosto na poesia é que fala-se de amor sem falar de amor; fala-se de rejeição sem falar de rejeição; e assim por diante. Poetas falam de nada falando de tudo.
Jabá e recomendação
Na última sexta, conversamos sobre a importância dos Museus em nossas vidas no podcast Incêndio na Escrivaninha. Confere lá:
E se você curte livrarias, a poeta Ana está postando muita coisa bacana sobre elas no seu instagram.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de amor.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
ps: as imagens que ilustram o texto são do pintor Jonathan Wolstenholme.