Dois tabus & uma mulher
Coisas que me atravessaram no dia internacional da mulher
TEMPO DE LEITURA: 4 MINUTOS.
Fugindo do editorial do mês para falar, muito brevemente, sobre o famigerado 8M. Vulgo, ontem.
Duas notinhas breves. A newsletter hoje é curta.
Dois tabus para todas as pessoas, mas especialmente difíceis de atravessar sendo mulher:
1. consumir drogas
Me senti tão pouco mulher ontem que nenhum post sobre mulheres pareceu ser sobre a minha pessoa. Mas chorei com alguns e ri com outros. Foi bom olhar para o mundo sem achar que as coisas são sobre mim (mas são para mim, no fim). Foi quase como um teste de alteridade completa. Ser mulher é uma experiência intoxicante de regras e sentir-se alheia a elas é um pouco como respirar uma realidade alternativa. Ano passado uma amiga muito próxima consumiu drogas demais e entrou em um estado de consciência paralela, ficou perdida no limiar entre o sonho e a imaginação. Eu estava de cara limpa, mas a experiência foi tão intensa que me pareceu que eu rompia o véu dos mundos também. Ali, no meu papel de observadora, testemunhei. Ela estava de olhos abertos o tempo todo e falava sem parar, mas seus olhos miravam um horizonte invisível para nós, e ela conversava com pessoas e criaturas ocultas para meus olhos e ouvidos sóbrios. Eu quis ver essas criaturas também, mas sabia que mesmo se consumisse as mesmas drogas, o meu mundo paralelo não seria o mesmo que o dela. A mulher estava triste e desesperada, mas todo mundo sabia que nada mais restava; ela precisava voltar para o mundo real sozinha. No nosso grupo de amigas haviam médicas e enfermeiras, tudo o que podia ser feito já havia sido feito. Tudo o que restava fazer era esperar. O tempo passaria e ela viria de encontro ao nosso mundo. Então foi exatamente isso que fizemos: nos sentamos na sua volta e a esperamos. Durou horas, foi chato em alguns momentos. Eu saí para fora para fumar um cigarro e olhar as estrelas na noite fria de início de primavera no hemisfério norte, voltei para dentro para juntar à vigília. Esquentei comida, trouxe cerveja. Mantive todo mundo alimentado. Quando o sol amanheceu perto das 7 da manhã, ela voltou para o nosso mundo.
Ser mulher é sobre essa espera. Sobre observar as outras em seus desesperos, suas aventuras, altos e baixos. Podemos fazer tudo ao nosso alcance, mas na maioria das vezes nosso alcance é muito pouco. Tudo o que resta é estar ali. Segurar a mão e estar presente.
2. criar intimidade fora do arranjo sexo e família
Na noite seguinte, eu enchi a cara de champanhe com um homem cinquenta anos mais velho. Eu sabia que ele estava morrendo, nada mais restava a não ser viver os dias enchendo a cara e conversando. Perguntou minha idade, eu disse (pela terceira vez desde que nos conhecemos). Quando eu tinha a sua idade, todos os meus amigos estavam mortos. Meus olhos encheram d’água. Ele sorriu. Não chora, todo mundo vai morrer um dia. As roupas de couro e látex preto do velho contavam muito mais do que histórias de fetiche, eram fragmentos de um passado de opressão e fuga. De viver o amor e o sexo no sigilo do medo. Um corpo carregado de mágoa, mas também de vida, da felicidade de ter atravessado as décadas para ser livre num tempo novo. Numa realidade nova. Ele secou meu choro e eu o agradeci por ser meu amigo, por estar vivo ali comigo e por ter sobrevivido. Por atravessar os anos e me contar sobre seus falecidos. Me senti muito mais jovem do que realmente sou, pois sob o olhar amoroso do homem eu ainda era promessa de uma vida que se desenrola. Meu corpo projeta o potencial de uma realidade que ainda não existe, mas que se eu sobreviver, vou descobrir. Também já carrego meus mortos no lombo. Já sei que o fardo fica mais pesado a cada ano que passa, porque a idade nos enfraquece por dentro e por fora. Ficamos mais emocionados. Nesse lombo, a carga só aumentará. Me sinto uma mula atravessando estradas floridas, noites escuras, dormindo onde há paragem e encontrando todo tipo de viajante pelo caminho. Meu amigo é um corcel velho e cansado no celeiro. Passei a noite enchendo seu copo de água porque mesmo com 80 anos, o homem ainda esquecia de arrefecer a sede mais básica. Trocamos confidências sobre nossas tatuagens e ele me mostrou uma na virilha, aos risos. Combinamos que um dia eu faria a mesma tatuagem e, quando estivesse bem velha, daria a mesma ideia para alguém cinquenta anos mais jovem.
3 vezes em que falei sobre feminismo
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Ótima reflexão ...
Me emocionei real com seu texto. Especialmente o último parágrafo da primeira parte, a reflexão do ‘ser mulher’