Endurecer o pé, sem perder a aventura
O que fazer quando precisamos atravessar sozinhos os perigos que o mundo apenas nos ensinou a evitar? Nós endurecemos os pés e vamos
Olá. É quarta-feira.
Quando escrevi o texto de hoje, era ontem. E ontem ainda não havia ocorrido uma chacina na Vila Cruzeiro e um massacre numa escola do Texas.
Queria falar algo sobre isso hoje, mas não há o que falar. Me falta qualquer palavra que não seja o lugar-comum. A indignação, a solidariedade e o sentimento de impotência. Tem tão pouca coisa no mundo que podemos controlar - na nossa pequena fúria ao ler as notícias, só resta aquele sentimento de perda. Não se sabe do quê ou de quem, pois não conhecíamos ninguém do meio da tragédia. Mas dói. Talvez, nesses momentos, a gente simplesmente perca um pouco da humanidade.
Que a gente ainda tenha imaginação para sonhar um amanhã menos desesperador.
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Sobre endurecer a sola do pé
Há dez anos, eu morei por um tempo numa casinha na Vila Gumercindo, em São Paulo, um bairro modesto de trabalhadores da área da saúde e da construção civil. No limite entre a zona sul e a leste, nas madrugadas de sábado eu descia às quatro e meia da manhã na estação Santos-Imigrantes, descalçava os sapatos e entrava na rua do lixão. Era o caminho menos perigoso da estação até a casinha. Eu dava uma corrida de pés descalços até a ponte, passando por uma rua deserta em que de um lado havia os fundos de prédios comerciais e, do outro lado, o lixão e seus fedores. Comentei sobre isso com algumas amigas e elas perguntaram por que eu não voltava para casa de táxi depois das festas. Eu ganhava 1500 reais por mês, não tinha dinheiro para táxi.
Quem alugava a casinha era minha amiga Jussara, que morava lá nos finais de semana — de segunda a sexta ela ficava em Minas Gerais, fazendo o mestrado. Um dia contei para Jussara sobre minha técnica. Para minha surpresa, ela disse que fazia o mesmo, desde a época em que morava ali sozinha. As pessoas ensinam as minas a evitar ruas escuras e desertas, principalmente à noite, mas ninguém nos ensina o que fazer quando não temos escolha e precisamos atravessar o escuro sozinhas. Esta fala da Jussara vibra em mim até hoje.
Muita gente dizia que eu tinha sempre a opção de não sair. Ou de voltar para casa mais cedo na sexta-feira. Mas eu tinha 22 anos, morava sozinha na cidade mais populosa do país, coisas maravilhosas aconteciam nas noites de sexta para sábado e eu queria fazer parte delas. Eu nunca mais teria 22 anos de novo. Então, atravessava a rua do lixão no escuro, de pés descalços, para não fazer barulho. Apenas mais uma sombra na noite fria da cidade.
Fiz a travessia inúmeras vezes e jamais esquecerei do alívio no momento de enfiar a chave no portão e deslizar meu corpo para dentro das grades que me isolavam do resto do mundo. Esse mundo que, ainda bem, não é feito apenas de perigo, mas também é feito de delícias. Talvez a técnica seja focar nas delícias, preparando-se para o que fazer em caso de perigo.
Nas primeiras vezes, meus pés terminaram machucados. Mas com o tempo, a sola foi endurecendo. Uma camada de pele grossa se formou no calcanhar e na bola embaixo do dedão, e eu fui aprendendo que eu não deveria lixar aquelas partes do pé. Fui criticada pela polícia da beleza e da pedicure bem-feita, não foi nada legal escutar que meus pés não lixados seriam, mais cedo ou mais tarde, a razão pela qual alguém desistiria de ficar comigo. Mas eu não tinha como abrir mão do pé grosso. Ele me levava silenciosa e rapidamente pela noite escura até a segurança de casa.
Se me fosse negado o amor de alguém por causa da sola grossa do meu pé, não era amor. Era custo. Me livrar da dureza que tomou conta daquela parte minúscula da minha pele seria renunciar a viver a vida de acordo com meus próprios termos.
Machucar para fortalecer
Hoje eu estou me preparando para uma viagem longa, a pé. E nessas semanas que antecedem a viagem, eu estou amaciando as botas que vão me levar pela estrada até onde eu quero ir. Pesquisando sobre a rota, vi outros viajantes avisarem sobre os calos e as bolhas, “serão seu maior inimigo na estrada”. Há inúmeros jeitos de evitar esse problema, várias receitas e recomendações. Mas parece que nada pode prevenir 100% o seu surgimento. Então, me perguntei: como vou lidar com os calos e bolhas, sozinha na estrada, no meio do nada?
A resposta para isso é muito simples. Ensaiando. Andar uma quilometragem parecida pelas ruas, aqui e agora (bem antes da viagem), até fazer calos e bolhas nos pés. Assim eu descubro como lidar com o problema. Veja bem, hoje eu estou mais velha e muito mais radical e cabeça-dura. Mas é verdade, o único jeito de saber o que fazer com os machucados é descobrir como lidar com eles enquanto estou em um ambiente seguro. Aqui e agora eu estou em casa, perto da farmácia, do hospital e da internet com seus tutoriais e informação infinita.
A outra opção que eu tenho para evitar os machucados é simplesmente não ir. Para que caralhos eu quero viajar a pé? Por que vou me botar numa situação deplorável dessas? Porque o mundo é repleto de perigos e delícias. E se não dá para garantir que os perigos serão plenamente evitados, eu posso pelo menos me preparar para eles o máximo que eu conseguir. Os perigos são quase sempre os mesmos para todas as pessoas, mas as delícias são sempre diferentes para cada um de nós.
A sola dos meus pés nunca esteve mais grossa do que agora. E eu nunca mais vou ter 32 anos de novo. Se eu não for para onde meu desejo quer me levar aqui e agora, quando irei? A gente passa pelo mundo rápido demais para pensar em não viver ele de acordo com nossos termos.
O texto acima foi revisado pela minha querida amiga Leticia Dáquer, tradutora, blogueira e podcaster no incrível Pistolando Podcast. Chamem a Let para revisar e traduzir os textos de vocês!
Let, obrigada ♥️
“Um navio sempre estará seguro no porto. Mas não é para isso que navios são construídos.”
John A. Shedd no livro Salt from my Attic
(tradução minha)
Satélite de recomendações
Série
Our flag means death é uma série de piratas, baseada na vida de Stede Bonnet, um aristocrata que viveu na região do Caribe até se encantar com a ideia de cair no mar e virar um pirata. É um série de humor e drama, 100% queer. A melhor que eu vi até agora em 2022. No elenco, tem o Taika Waititi (da minha série de humor favorita, What we do in the shadows) na pele de um pirata livremente inspirado no famoso Barba Negra.
Para ver pela HBO, ou pelos cantos obscuros da internet.
Livro
A vida mentirosa dos adultos talvez seja uma boa porta de entrada para o universo de Elena Ferrante. É um livro curto, de linguagem simples e reflexões profundas. Eu li duas vezes, em ebook.
”minha tia dissera: você não é apenas do seu pai e da sua mãe, você também é minha, você é de toda a família da qual ele veio, e quem fica do nosso lado nunca fica sozinho, se recarrega de força.”
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Rápido jabá
O Paulo vinícius, do Ficções Humanas, fez uma longa resenha sobre meu cyberpunk brasileiro, Suor e silício na Terra da Garoa, publicado em 2020 pela Mafagafo (com edição de Giovana Bromente e ilustração de Debbie Garcia).
A história se passa no Brasil de 2070 e abre as portas para um futuro maluco, palco de narrativas mais longas em que estou trabalhando agora.
Você encontra o texto gratuitamente no site da Mafa, nesse link aqui.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.