Não é esquisito pensar que os museus de arte parecem mais cheios de vida do que os museus de coisas naturais?
Ao lado do campus da universidade há um museu. Estranho como as coisas se repetem, era assim nos tempos da minha vida em Porto Alegre também. Antes mesmo de entrar na universidade, eu vivia enfurnada no Museu da UFRGS, levava os colegas do ensino médio lá, ensaiava uns dates (nunca tive sucesso paquerando alguém que tenha levado ao museu; não recomendo), eu poderia ser a própria moça da visita guiada, passava horas lá dentro fazendo nada, mas pensando em tudo. No auge das minhas visitas mais frequentes, rolou uma exposição de fósseis encontrados em escavações no Rio Grande do Sul. Eu ficava vidrada nas ossadas, me impressionava a morte que durava muito mais que a vida. A imortalidade dos fósseis era completamente acidental. Aquilo me acometia de um respeito quase religioso, meio estapafúrdio até — pensava no bicho como um grande acerto da evolução. A petulância do homem em exibi-lo como um troféu maluco parecia uma anomalia antropocêntrica, mas também era uma maneira de sacramentar a ciência, festejar a pesquisa. Nós e nossa mania de analisar as coisas. Colecionar as coisas. As pedras, as conchas e até defuntos de muito tempo atrás. Sorte nossa existirem planetas em campos de gravitação inalcançáveis, a coleção pessoal do sol está fora de nosso alcance – já pensou em roubar coisas do sol? Bem, isso nunca nos impediu de catalogar o cosmos.
Museus me provocam esse tipo de pensamento descabido. Os shoppings também, mas isso é história para outro dia. Hoje, aqui em Estocolmo, o museu ao lado da universidade é gigantesco, mais velho que o próprio campus, com estrutura e cara de palácio, coleções enormes de paleologia, geologia, biologia e botânica. Assim como o outro museuzinho, eu caí de amores por ele antes mesmo de ser estudante da universidade aqui.
O Museu de História Natural, Naturiska Museet para os íntimos, abala minhas emoções. Gosto de começar pelo segundo andar, na saída da seção de animais nórdicos. Assim, o primeiro a ser visto é um alce morto em todo sua magnificência. Estufado de palha, ele me olha de frente, como se escutasse minha alma. Gosto de vê-lo de baixo para cima, gosto de estar mais perto das patas do que da galhada. Gosto de vê-lo com reverência. Há uma certa pulsão de morte-vida na ideia da taxidermia, um jogo entre podridão e beleza em que o ser humano age como um servo de Thanatos. Não é um necromante, tampouco um cientista, o taxidermista é um certo tipo de aberração. Mas reconheço uma certa magia no ofício. Talvez em outra vida, talvez.
A coleção de taxidermia do Naturiska é enorme e funciona como peça fundamental no meu fascínio antigo com tudo o que é meio morto e meio vivo. Dos fósseis aos animais empalhados. Se os bichos mortos do Museu da UFRGS são obras do planeta Terra e da natureza, os bichos mortos do Naturiska são obras dos homens. É por isso que nós vivemos o Antropoceno.
Tem uma ossada de elefante completa nesse museu. Na minha ignorância sobre elefantes, sempre tenho a impressão de que é um mamute. É muito gigantesco. Também fiquei anos fixada na ideia de que era uma réplica artificial, mas terça-feira eu finalmente fiquei tempo o suficiente em silêncio na presença do elefante para ler o texto todo que acompanha sua carcaça e soube que é tudo de verdade. A parte ruim é que ele foi caçado. A parte boa é que o seu assassino foi morto por outro elefante, poucos anos depois.
Tenho ido a esse museu com mais frequência. Levo minha marmita para sala onde há um bezerro de duas cabeças empalhado, na frente de um morcego gigantesco, e fico lá comendo com eles. Gosto de meditar olhando no olho de vidro dos bichos. Visito a coleção de escaravelhos. Lamento sua possível morte em um laboratório empoeirado — a taxidermia não costuma ser uma ciência cruelty free com os insetos. Aqui debaixo do meu veganismo, suspiro. Contemplo as vidas que já não são nada mais, mas para mim parecem tudo: uma suspensão do desaparecimento que a morte proporciona. Um milagre concedido pela natureza sob condições muito específicas de temperatura, umidade e pressão, agora dominado pelos instrumentos meticulosos do homo sapiens.
Como pode haver tanta vida e tanta morte habitando um mesmo corpo?
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Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Obrigada pela menção. ❤️ Eu tenho uma relação parecida com museus, inclusive quero ir nesse de Estocolmo quando for prai (aliás, querendo armar um passeio aí).
Confesso que ainda não fui no Naturiska. Não sei o motivo, mas ainda não fui. Vou colocar em uma lista nova, "lugares para ir e mexer comigo". Taxidermia sempre me dá muitas emoções doloridas, acabo escolhendo lidar com outras coisas ao invés disso.
Nope foi um filme maravilhoso! Tem tanto simbolismo, tanta e tanta coisa maneira para falar sobre que eu aluguei os ouvidos do Gabriel por horas. Tem uma conexão interessante com este texto seu, um quê animal, estudo e expectativa do outro. Maravilhoso!