Eu estou cansada de falar de problemas do mundo enquanto faço links entre eles e minha vida pessoal. Mas o nome desse espaço é Segredos em órbita. Aqui eu aceito que talvez minha vida não seja tão importante assim ao ponto de precisar escondê-la num canto escuro fechado.
Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Com a escrita, às vezes consigo iluminar as criaturas escondidas no escuro. E é disso que eu quero falar hoje. De uma parte de mim que eu não entendo, e toda vez que tiro para fora do armário, tenho calafrios. Um lado meu que me assusta; um monstro. Hoje coloco o holofote nesse monstro e tento olhar para ele com os olhos bem abertos.
Será que você também tem um monstro desses escondido no escuro do armário?
Obs: o texto pode conter erros de digitação, gramática etc.
Gênesis
Presta atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Por muito tempo eu quis acreditar que não saber nada sobre minhas origens genealógicas era um charme. Um charme muito íntimo, de uma sensualidade quase narcisista. Se a povo nenhum eu pertencia, então a todos os povos eu pertencia.
Tem coisa mais brasileira do que isso?
Esse romantismo pessoal foi se desmanchando quando eu dei-me conta de que, embora minha origem humilde me garantisse um certo orgulho de quem teve que ralar muito para “conseguir as coisas na vida”, eu navegava pelo privilégio branco, por exemplo. Isso se tornou muito esquisito quando descobri o único fato concreto sobre minha árvore familiar; que a avó do meu pai, minha bisa, nasceu no povo mbyá. Isso explicava algumas características físicas que distinguem a família de meu pai. Mas era só isso e nada mais. Nada temos em comum com os mbyá; eu poderia morrer sem saber disso e as coisas ficariam do jeito que estão. Nada sabe o povo mbyá de mim, e nada a respeito disso mudará. O que restou foi esse pingo de sangue mudo, talvez finalmente uma pista para a causa da violência irracional contra nossa família miscigenada através dos anos, histórias que carregamos de geração a geração, vertendo pela boca estigmas que nos marcam por baixo da pele e assolam o coração.
Exôdo
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó
Eu moro há 7 anos na Europa. Não, não tenho nenhum parente europeu que me garantiu um passaporte europeu. Talvez eu tenha um orgulho ridículo disso? Sim. Por muito tempo senti uma certa limpeza moral por não ter o privilégio de uma ascendência europeia. Há um certo brio em, mesmo sem esse privilégio, conseguir fazer uma vida confortável aproveitando as oportunidades que abriram-se para mim no velho continente. Minha estadia aqui dependeu sempre de fatores relacionados ao trabalho; e foi através desses anos trabalhando aqui que adquiri o tal passaporte europeu. Confesso que quando alcancei o direito legal de ter esse passaporte, eu instantaneamente o rejeitei. De alguma forma, parecia que eu estava virando a casaca, comprometendo-me em um contrato simbólico que me conecta diretamente, até minha morte, a essa terra que eu aprendi a chamar de colonialista e culpar pelos males do mundo. Aqui, não falo da Suécia como um país contido em si, mas da Suécia enquanto parte da Europa. Adquirir a cidadania sueca não me faz apenas sueca: me faz europeia. Eu nunca quis ser europeia.
Lamentações
Preste atenção, querida
De cada amor, tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés
No final do ano passado, fui pela segunda vez na vida a Portugal. Em uma corrida de táxi, o animado motorista português conversou bastante (todos eles falam bastante e com muita gentileza). Lá pelas tantas ele disparou isso à queima-roupa: tu sabes que sou descendente de brasileiros?
Nada na vida me preparou para ouvir essa frase e eu devo voltar a escrever um texto só para ela. Aquilo me atravessou de um jeito muito estranho. Perguntei mais, ele contou que o avô veio do Brasil nos anos 60, não se sabia quais as origens dele além do “veio do Brasil”. Eu nunca tinha me deparado com o Brasil como referência originária por alguém que não nasceu lá. Vê-lo dizer isso, naquele sotaque lisboeta, foi impressionante.
Desmanchou um pouco a rigidez que tenho com Portugal. Confesso que demorei muito tempo para ter vontade de ir até esse pequeno país. Depois de anos morando fora, fazendo turismo aqui e ali, só consegui ir para Portugal com essa premissa: é só mais um país onde faço turismo. É só mais um país barato, onde consigo beber três cervejas boas pelo preço de uma, nem tão boa assim, na Suécia. É só mais um país próximo para fugir do frio e da escuridão no meio do inverno escandinavo.
É claro que tentar distanciar-me de Portugal com essa frieza predatória me fez muito mal. Não se sustentou. Se não consigo ter essa postura com os outros países que visito, por que conseguiria ter nesse lugar onde todos me tratavam tão bem? Depois de ouvir tanto que portugueses têm preconceito imediato com brasileiros, eu tinha me preparado para enfrentar “situações”, vesti uma casca grossa e fui. Mas nada aconteceu. Talvez seja o tal privilégio branco, reconheço. Talvez eu tenha tido a sorte de cruzar apenas com gente bacana. Sim, é possível.
Voltando um pouco mais para trás no tempo, eu lembro, com um gostinho amargo na boca, de alguns portugueses que conheci aqui em Estocolmo, logo que mudei para cá. Foi uma das poucas vezes na minha vida em que fui mal-educada conscientemente. E como eu os tratei mal! Nossa. Eu fui grossa demais com aquelas pessoas, sem razão nenhuma. Sem pensar, como uma reação automática revelando uma mágoa cuja profundidade até então eu desconhecia. Olhar para aquelas pessoas e pensar em todo o ouro que nos roubaram. Em todos os recursos que nos arrancaram e transformaram em bem-estar social para a população daquele país tão simples, tão católico, tão… pequeno.
Mas o que eu não queria reconhecer é que aquelas pessoas ali na minha frente não eram as pessoas que roubaram o ouro. Não foram aquelas que exploraram as terras e arrancaram minha bisavó mbyá de sua aldeia. Não foram elas que decidiram embranquecer o Brasil até que eu viesse ao mundo, com a pele mais branca que a geração anterior, representando o sucesso desse triste plano racial. Eu tratei aqueles portugueses mal porque eu tinha raiva e não sabia o que fazer com ela. Tinha raiva de coisas que não eram culpa minha, nem deles. Mas quem navegava pelo maior privilégio, fruto da relação entre nossos países, eram eles. E ao invés de amainar as ideias, esse pensamento só aumentava minha raiva. Eu não sabia o que fazer com minha raiva, então punia quem estava ao meu alcance.
É claro que me arrependo da infantilidade. Infelizmente, não tenho mais como pedir desculpas para aquelas pessoas. Mas tenho como ser uma mulher diferente hoje.
Olhar de frente para essa sombra do meu passado exige uma força descomunal, quase um revisionismo histórico pessoal; ainda não sei se consigo me perdoar, mas pelo menos consigo entender, na esfera das ideias, o que aconteceu. Já é melhor que nada.
Autocrítica é um caminho doloroso.
Apocalipse
Em inglês, o livro do Apocalipse da Bíblia se chama Book of Revelations, livro das revelações. Às vezes isso me soa como se eles tivessem suavizado a ideia de apocalipse. Em português, a palavra “apocalipse” evoca uma conclusão, um senso absoluto de terror, de fim dos tempos. Mas sua raiz etimológica vem do grego ἀποκάλυψις apokálypsis, que significa exatamente revelação, descoberta, etc.
Me chama a atenção essas nuances de tradução, essas mudanças que o tempo e o espaço provocam na palavra escrita e as coisas que se escondem no escuro do sentido.
Costumo visitar minha família pelo menos uma vez por ano, desde que me mudei da capital gaúcha há 11 anos atrás. Nessas visitas, eu e meu pai sempre repetimos um mesmo ritual, só nós dois, em ele abre as gavetas de documentos da família, da casa, e me mostra como ele organiza as coisas. Revisamos contas pagas há décadas atrás, cópias de comprovantes, carteiras de vacinação, certidões de nascimento, casamento e óbito. Mas dessa vez, quando estive lá mês passado, ele abriu uma pasta de documentos nova. Aparentemente era algo que ele guardava há décadas, mas nunca tinha tido coragem de abrir sozinho. E foi assim que, sem querer, eu me vi no papel de testemunha da minha própria sina.
A pasta guardava certidões de nascimento e casamento do meu avô. Aquela parte da família da qual, teoricamente, nada sabíamos. Sim, lá estava um pedaço da árvore genealógica que permaneceu trancado às traças e do qual eu sequer suspeitava da existência. Meu pai colocou os documentos na minha frente e pediu que eu os lesse.
Então, sem aviso prévio, pousavam ali na minha frente os meus bisavós.
Os Ferreira Lopes, nascidos na última década do século 19, ambos filhos de portugueses.
Passar a vida sem saber disso me botou nessa posição confortável, de mãos lavadas para pensar em um balanço pós-colonial como quem analisa um artigo acadêmico, um livro de não-ficção, uma treta no twitter. Se não sei quem eu sou, eu sou tudo e sou nada. Posso olhar o mundo com distância.
Agora essa distância diminuiu. Botou-me num lugar que nunca aprendi a estar.
Na prática, essa revelação muda minha vida tanto quando a descoberta dos mbyá. Nada.
Mas na teoria, o que muda na forma como eu me sinto com a concretude dessa nova herança vazia?
Eu não sei. Não sei.
Ainda.
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Os versos em itálico no meio do texto são partes da canção O mundo é um moinho, do sambista Cartola. Essa canção foi composta por ele para sua filha Creusa, em 1943 (mas só foi gravada em 1976).
Hoje ficamos sem jabás e recomendações.
Mas se você tiver uma palavra para me mandar sobre esse rebuliço pós-colonial em que me encontro, estou aceitando de bom grado respostas a essa newsletter.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Sent from my tamagotchi
O que tenho a comentar é que seu pai tem direito a naturalização portuguesa, hahaha. Mas se seu avô/avó que é filho/a dos portugueses for vivo, aí muda de figura e até você tem direito. Não sei se facilitaria de alguma maneira a sua vida ter a cidadania. Se não servir pra nada, ignore. Mas se interessar, me avise que tenho alguma experiência no assunto.
Oi! (tô lendo as news atrasadas, então é chuva de comentários, rs)
Olha, como a gente escreve pra falar de si mesma, vou conectar seu texto com uma experiencia recente que tô vivendo. Do lado de cá, lá na minha família, existe uma obsessão com a busca das origens familiares, principalmente pelo meu pai. O homem tem uma conta num site chamado myHeritage, que monta sua árvore genealógica e vc inclusive consegue conectar com outras ao redor do mundo. Cresci ouvindo nomes de meus antecessores, até numa obrigação de decorar o nome completo dos meus avós e bisavós, suas cidades de origens e histórias de vida. De um lado, tem eu que me interesso e me orgulho em poder saber desse passado, ainda mais depois que cresci entendendo que a maioria das pessoas não sabe MESMO de onde "veio" por questões absurdas da nossa história brasileira. Mas de outro lado tem a paulamaria que quer existir pra além disso, que hoje se vê na fila de um processo caríssimo de cidadania italiana sentindo muita raiva do dispêndio emocional e financeiro que isso causa. E relembrando a colonização. E ficando com raiva. E tentando construir uma existência que dê conta de tudo isso. risos. choros. Achei maneiro vc dizer de um certo orgulho na sua conquista em ter construído sua vida aí na suécia sem a herança familiar. Por anos invejei (mesmo!) quem conseguia ir pra europa, mas demorei a entender que eles tinham ido com a facilidade do passaporte (meus amigos que foram foi nesse esquema) que a gente sabe que abre porteiras. Esse comentário tá virando um desabafo confuso, né? Enfim, era pra compartilhar que gostei de te ler, pra te indicar o myheritage, que pode te conectar com uma família mais extensa, se vc tiver interesse. E, ah, quase esqueci. Visitei Portugal por poucos dias e senti uma estranhíssima familiaridade, achei que ia ter mais raiva, mas no fundo eu amei. Enfim, questões.
beijos.