Harry Potter & a era da decepção
Esse não é mais um texto sobre como J. K. Rowling se tornou deplorável (ou sempre foi, nós que não sabíamos). É uma reflexão sobre nossa relação com obras de arte, a internet e o que estamos esperando disso tudo.
Atenção: pode conter erros de digitação etc, vocês sabem.
Obras, artistas e humanos
É de senso comum a ideia de que nossa felicidade é responsabilidade dos outros. Pode ser que as pessoas não digam isso em voz alta, mas a ideia está aí por todos os lados. Terceirizamos nossas expectativas desde as manhas da infância até o resto da vida que passamos colocando pessoas (na maioria das vezes, artistas) em pedestais — que nem sempre eles pediram para estar.
Foi fácil olhar para J.K. Rowling por todos aqueles anos como uma mãe solteira que chegou lá; uma escritora que venceu; representante de uma nova era para os livros de fantasia. O gênio por trás de Harry Potter, o menino que sobreviveu e que ajudou a muitos de nós, crianças nerds, tímidas, introvertidas, etc, a atravessar a adolescência com um pouco mais de vontade de viver.
Foi fácil vibrar no dia em que Rowling anunciou que Dumbledore era gay, mesmo que não exista uma única linha sobre isso em nenhum livro.
Foi fácil aceitar qualquer novidade de atualização sobre o universo mágico de Potter porque isso o aproximava do nosso olhar crítico de adulto sobre as obras. Dumbledore gay torna o mundo mágico mais real. Atualiza nossa própria juventude.
É difícil falar de Harry Potter hoje sem mencionar um grande “mas...” depois. Nos últimos anos, Rowling não só expressou opiniões claramente transfóbicas — para quem não sabe, transfobia é discriminação contra trans (pessoas que se identificam com um gênero diferente do que foi lhe determinado ao nascer) —, como também escreveu um ensaio que reforça e justifica seus preconceitos. A situação coloca a massa de leitores, principalmente aqueles que (como eu) eram jovens adolescentes na época em que os livros ainda estavam sendo lançados, em uma situação de revisionismo pessoal. Meu revisionismo sobre os livros de Rowling começou quando li o primeiro ensaio sobre o antissemitismo na obra. Eu era tão jovem que nem sabia o significado da palavra antissemitismo, lembro bem (tive que procurar num dicionário de papel). Mas não foi um grande baque. Eu nunca pensei na Rowling como um ídolo, apesar de amar os livros. Entendi a crítica e passei a olhar para os banqueiros de Gringotes com outros olhos. E não, não podemos passar o pano para esse tipo de coisa.
No caso do antissemitismo, apesar de ser muito claro enxergá-lo depois que alguém o aponta (o famoso “impossível desver”), não deixa de ser uma análise crítica, portanto, externa. Tal qual a crítica literária clássica é feita.
No caso da transfobia, o buraco é mais embaixo. Ninguém apontou transfobia na obra de Rowling. Foi ela mesma, como pessoa, que expressou suas opiniões pessoais a respeito do assunto através dos mesmos canais por onde anunciou a homossexualidade de Dumbledore e outros tantos detalhes que escolheu deixar de fora dos livros.
Se as palavras de Rowling no twitter podem revelar a orientação sexual de personagens que conhecemos tão bem, e tornar isso uma nova verdade dentro do cânone1, praticamente qualquer coisa que ela falar afeta toda a maneira como a gente percebe sua obra. Rowling criou um buraco para si mesma — não que isso afete muito, a mulher é milionária e não fosse o ego do tamanho da Terra, podia seguir a vida sem redes sociais, escrevendo livros de mistério sob pseudônimo etc.
Artistas são pessoas. E enquanto estiverem vivas, tudo pode acontecer. Arrisco dizer que mesmo depois de mortas pode ser que se desenterre uma escrotidão até então desconhecida.
“[..] o escritor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma, dotado de um ser que precedesse ou excedesse a sua escritura, não é em nada o sujeito de que o seu livro fosse o predicado; outro tempo não há senão o da enunciação, e todo texto é escrito eternamente aqui e agora.”
(BARTHES, Roland. A morte do autor. 1967)
O espelho de Ojesed
As obras de que eu mais gosto provavelmente me evocam algum tipo de identificação. Ou uma emoção, uma reflexão, que promove mudanças no jeito que enxergo o mundo. Há um espelhamento nas palavras, que pode revelar tanto proximidade com o que é escrito quanto distância e diferença. Eu acredito que toda a obra de arte, não só o livro, pode ser um espelho.
Esses dias ouvi alguém falando sobre o que faz de um livro um bom livro. Não lembro quem foi, mas a mensagem ficou comigo. O livro bom é aquele que, apesar de, nós gostamos. O “apesar” dos livros é que os torna especiais, porque o resto do livro é tão bom que passamos por cima daquele detalhe para apreciar a obra.
Quando foi que o “apesar” virou o nome de quem escreveu o texto?
Tem gente que eleva essa experiência um pouco mais. Assume o risco de se identificar não com a obra, mas com o autor da obra. Como se houvesse uma simbiose entre as identificações que encontraram no texto e a pessoa que escreveu-o.
O cancelamento do autor é uma rachadura no espelho. Uma quebra do acordo com esse leitor — o acordo de para sempre simbolizar uma parte desse leitor que é perfeita, íntegra ou intocável.
Aposto que por isso dói tanto. Por isso, todo mundo precisa expressar opinião publicamente.
“Nas sociedades em que condições modernas de produção prevalecem, a vida é apresentada como uma enorme acumulação de espetáculos. Tudo que é vivido de verdade se reduz a uma representação.”
(DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. Critical Editions. 2021. Tradução minha).
A fada sensata
Antes das redes sociais, tínhamos pouco acesso a informações sobre a vida dos autores. A internet hoje nos traz um panorama tão detalhado da vida alheia que uma mini bio com foto na contracapa de um livro é brincadeira de criança. Temos acesso desde a marca de café que as pessoas consomem, a cor da parede da casa delas, até ao nome da série que estão maratonando na Netflix esse final de semana.
Essa sensação de acesso universaliza tudo. Temos o mesmo tipo de exposição aos artistas e aos nossos vizinhos, amigos, parentes. O fenômeno que observo agora é que essa sensação de acesso se estende até para quem não se expõe tanto. E até mesmo para quem já morreu — vide a loucura generalizada das pessoas revoltadas com Geroge Orwell (só o descaralhamento que eu sinto com esse assunto já renderia uma newsletter inteira).
A pressão em ter uma vida perfeita nos assombra. Mas acaba sendo a mesma perfeição que exigimos do outro.
A escrotidão de Rowling está aí para nos mostrar que a mesma pessoa que cria o Dumbledore gay também colabora para a cultura de violência contra pessoas trans.
Enquanto isso, no cânone, nada disso é registrado. O que sobra para o tempo é a obra. Rowling um dia será apenas pó.
E o que isso quer dizer sobre nós?
Provavelmente que a fada sensata é tão real quanto a fada do dente.
Jabás e recomendações
Sabe o Nobel de Literatura? Gravamos um podcast para falar das tretas e fofocas do prêmio no episódio extra-temporada do Incêndio na Escrivaninha. Produção de Ana Rusche, Thiago Ambrósio Lage e dessa que vos escreve. (Teve newsletter com novidades do Incêndio essa semana também. Confira aqui).
Não publiquei em nenhuma rede social sobre isso, mas essa semana maratonei a série On Becoming a God in Central Florida. O primeiro episódio é dificílimo, uma mistura de vergonha alheia estilo The Office, o pior da cultura coach que estamos expostos e seita de lavagem cerebral. Só dá para continuar assistindo porque a protagonista, vivida pela Kirsten Dunst, é o ponto de sanidade e deboche que segura na nossa mão e revira os olhos junto com a gente até o fim. Recomendadíssimo. Ainda tem o bônus de apresentar uma dinâmica típica de BDSM sem roupas de latex e o fetichismo clichê com que a mídia retrata esse tipo de relação (bônus para a cena na banheira no penúltimo episódio, que tem tudo a ver com o assunto).
Queria agradecer a todos os assinantes aqui da newsletter que apoiaram a Eita! Magazine na campanha para a terceira edição. Com os 160% atingidos, podemos bancar mais uma autora nacional com um conto inédito na revista. Parabéns a todo mundo que nos ajudou a tornar esse sonho realidade! Obrigada demais.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Sent from my tamagotchi
Cânone na literatura é um texto que é considerado parte da cultura, uma referência, ou mesmo uma obra fechada em si. Quando falamos de cânone da bíblia, por exemplo, falamos dos textos que são considerados o corpo bíblico “oficial” (para saber mais: Cânone ocidental). Aqui nesse texto, considero o cânone de Rowling a série de sete livros que leva o nome de seu protagonista e desconsidero as declarações adicionais sobre a obra que a autora fez depois da publicação (e que nunca entraram em nenhuma reedição da obra, portanto, não fazem parte do cânone. É como se, na prática, não existissem mesmo).