Eu não queria falar sueco, inglês e nenhuma outra língua que não fosse português e choro. Acompanhava a apuração dos votos em um bar no centro de Estocolmo, depois de trabalhar voluntariamente por 10 horas como mesária na embaixada do Brasil, sustentando o sorriso e a boa vontade o dia todo. Depois que encontrei o pessoal no boteco, não parei de chorar um minuto sequer até a virada de Lula. Não era um choro triste, era um choro raivoso, colérico. Do outro lado do bar, um sueco me olhava fixamente, ignorando a mulher a sua frente. Em algum momento da noite, ele se aproximou da minha mesa e eu me agarrei aos amigos brasileiros que me cercavam. Não queria falar outra língua, não queria explicar porra nenhuma para gringo nenhum. Era um momento só meu e dos meus.
Me sentia tipo uma onça. Talvez eu tenha rosnado.
Com vontade de rasgar alguém à unha, olhei a tela do celular e repeti inúmeras vezes: não é possível ter tanto filho da puta em um único país! Postei no twitter, onde me sinto a vontade para ser feroz publicamente. Estava insana mesmo e não queria parar de sentir aquela raiva. Tenho a impressão de que assustei metade dos amigos, acho que nunca perdi tanto a compostura na frente deles. Sentia-me vulnerável, exposta e visceral. Por isso mesmo sabia que era um momento especial. Uma dor convulsionada e indescritível. Quando Lula alcançou o oponente na contagem e a porcentagem virou, fui ficando mais calma. Até ficar evidente que haveria um segundo turno. Então, relaxei.
Foi quando o sueco conseguiu chegar perto. “Fiquei a noite inteira querendo falar com você” foi a primeira coisa que disse, antes de se apresentar. Não lembro o que respondi, mas falei com ele por dois minutos e fui embora. Estava exausta, fechando quase 24 horas acordada. Fiquei pensando se tinha sido grossa, decidi que não. Não tenho obrigação com desconhecido.
Vulnerabilidades
A raiva geralmente se origina daquela súbita sensação de impotência, quando você percebe que nem sempre as coisas dependem só de você. A raiva pode ser um sentimento muito solitário, mas a ameaça que a origina sempre vem de fora. Do coletivo. É a onça enjaulada vociferando pelas grades que a fazem vulnerável.
Me custou sete anos de terapia para aprender a raiva. Não vou abrir mão dela tão cedo. Raiva também é força motriz. Raiva é chuvarada com trovão, é faca que abre o mato, é petulância que expressa dor.
Precisamos de muita força para lidar com os problemas que sozinhos não podemos resolver.
Fui para casa. Tomei banho, fiz o famoso skin care, tomei um chazinho de menta, dei comida para os gatos, botei um pijaminha gostoso e fiquei aconchegada com eles no colo até dormir.
Sinto-me amiga da raiva, porque depois dela o que vem geralmente é silêncio. E alívio. O famoso estado de cuidado. Comigo mesma e com os outros.
Só quem tem muito amor no peito sente raiva por uma causa coletiva.
No dia seguinte, apaguei os tweets raivosos. Falei com a família. Respirei fundo e lembrei que Lula demorou 13 anos – de 1989 a 2002 – para ganhar uma eleição. E crescer no meio de pessoas de esquerda, estudar em colégio público e torcer pelo Lula desde a barriga da minha mãe ensinou-me a ser resiliente e esperançosa.
Depois da raiva, a gente cuida de quem se ama.
Hoje a campanha continua.
Ser de esquerda é isso. Raiva, cuidado. Autocuidado antes de tudo. Mas sobretudo, amor.
Bom outubro para todos nós.
Cuidem uns dos outros, cuidem de si mesmos.
E quando sentirem raiva, deixem ela vir.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e 13 confirma.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
compartilho muito esse teu sentimento, mas depois que o lula virou eu segui chorando. pra mim, era (e ainda é!) inadmissível um seegundo turno, pois claramente não haveria nenhuma possibilidade desse verme presidente ainda ter algum apoio.
mas o brasil tá complicado - pessoas sendo coagidas a votarem em bolsonaro, pessoas que não podem manifestar seu apoio a lula abertamente. a violência tomou conta e é por isso que tem dias que eu tô na defesa da raiva e do ódio. enquanto a gente quiser rebater paulada com florzinha não vai adiantar muito.
vamos pro segundo turno com sangue vermelho nos olhos!
vem, lulinha!
Nós da afroamerica latina somos um povo solitário, historicamente massacrados e mesmo assim sobrevivemos. Vamos seguindo... Os povos indígenas são a melhor referência disso. Hasta la victoria siempre.