Identidade e literatura
Me encontro transformada em um certo eu-tartaruga. Me movendo em própria lógica, mais no mar do que no solo; um casco de vivência, que não se assemelha a nenhum outro, mesmo entre os seres da própria espécie.
Qual é a influência do desenho dos cascos para outras tartarugas? Elas criam suas histórias, mas nunca sozinhas. A criação é sempre uma forma de acúmulo. Se falo tartaruga, a imagem vai se formando na cabeça de alguém.
Veja. Tartaruga. Tartaruga do mar e as patas antes arredondadas, pétreas, agora tomam formas de pás, meio remo, meio faca. Um tom mais azulado se mescla ao verde na imaginação e a tartaruga está a emergir da água salgada para a areia fina da praia.
Como Samuel Delany uma vez escreveu, contar uma história é usar a memória de quem lê para criar lembranças novas. E tanta gente insiste que escrever é telepatia, quando é uma fotografia também, uma viagem no tempo. Para sempre atravessar direto do passado de quem escreve para o futuro de quem lê - mas quem lê, o faz sempre no presente.
Quando foi que o presente virou algo que se dá?
O próximo instante é uma incógnita. E o anterior, já sabemos. Aqui estamos então.
Você no meu futuro. Eu no seu presente.
E as tartarugas? disseram elas. A voz da autora e da personagem ecoaram em coro na minha cabeça de leitora.
Ler Clarice Lispector faz isso com a gente. Em um minuto você se pergunta que bruxaria é essa e no outro não entende mais nada. E ainda sim continua — ou não. A maioria de nós simplesmente abandona, como para a maioria de nós é insuportável olhar para o desconhecido. Ou para o que torna o reflexo do outro inalcançável. É uma tal estranheza que para uns dá medo de continuar depois da primeira frase.
Acho que é mais ou menos isso que ela faz, sim. Se descortina perguntando o essencial, aquilo que procuramos saciar imediatamente após sede, fome e etc se tornarem passado. O que é a voz que brota na cabeça e faz da gente uma coleção de pensamentos ininterruptos?
Forma e conteúdo, velharias
Há um mistério por trás de cada tela que nem nos damos conta de que o carregamos para todos os lados. Contemplamos o abismo absortos em fascínio, tão perfeitamente seduzidos que — está vendo? Está na sua frente. Aqui e agora.
Todas as imagens que vemos nas telas são formadas de texto puro. Sem os interpretadores eletrônicos que traduzem esses códigos para a luz e cores, você toparia com uma coleção ilegível de letras, números e símbolos. Códigos.
Um cara chamado Kenneth Goldsmith propõe que se procure por uma imagem (ou arquivo de áudio) qualquer no computador e clique com o botão direito no arquivo. Nas opções, escolha “abrir com” e selecione um editor de texto (como o Bloco de Notas, Notepad, etc). Está aí o mistério revelado.
Goldsmith dedica sua arte e sua produção acadêmica a desmembrar o mistério da palavra, do texto puro, como matéria-prima para moldar obras e experiências. Ele dedica a vida a estudar o texto como apenas forma.
“Enquanto a teoria da desconstrução questiona a estabilidade do sentido da língua, condições atuais online e offline ampliam o caminho, forçando-nos a ver palavras como entidades fisicamente desestabilizadas, que não podem fazer nada além de informar — e transformar — o modo como nós, escritores, organizamos e construímos as palavras numa página”.
(Goldsmith, K. Uncreative Writing. 2011. Columbia University Press. Tradução minha)
Clarice nos carrega pelo conteúdo de uma imagética profana, misteriosa, bela, assustadora e óbvia como uma pororoca. Na sua concepção, moldar as palavras é desvendar o eu. Sangrar uma aparente falta de conteúdo para formar um texto coagulado, carregado de sentido.
É engraçado que ambos autores se desmancham e se reestruturam tanto em meu cérebro que quando leio Clarice em Água-Viva a afirmar que “o pensamento mais puro parece não ter autor”, eu aceito a declaração, mas penso em Goldsmith e em linhas de código. Parece errado jogar esse conceito tão simples para o futuro, um futuro tecnológico que Clarice não viveu. Mas o futuro da autora é o meu presente e nada posso fazer a respeito.
Cá estamos, cercados de sumiços.
E as palavras parecem se encarnar nos miolos como se vindas dessa entidade misteriosa e telepata. Não estamos todos cercados de entidades invisíveis operando por trás das telas?
O tempo se comprime em luz que por trás são símbolos.
Não é à toa que Goldsmith é um defensor da “uncreative writing”, um movimento de literatura pós-identitário, cujos conceitos atravessam-me quando leio Clarice — essa mulher cuja obra é pura exploração da identidade no seu aspecto mais nu.
Pensar, ler e escrever são afirmações da existência. Comece olhando para seus documentos de identificação.
Não é bonito pensar que um dia tudo isso aqui vai acabar? Eu, você, o planeta. Se não for um cometa, um asteroide, será o sol se explodindo. E o tempo continuará a se expandir, sem se importar com a nossa inexistência.
É bom lembrar também que entre ler, escrever e pensar existe a palavra, a língua, os sons que construímos com o ar que botamos para fora de nós. Desprezamos os pulmões no dia a dia, mas eles estão aqui. Formando um excelente time com o nariz e a boca.
Vem a ser o som, vindo desse ar deslocado pela saliva da língua, o progenitor da palavra escrita.
No presente
Escrevo esse texto voando. De verdade. Estou montada nas entranhas de uma daquelas bestas de metal, abaixo de mim estão as nuvens e montanhas que julgo serem francesas. Antes era o mar aberto e me perguntei se estava sobrevoando aquele pedaço de água onde a borda da Europa se separa dos ingleses.
Uma máscara de feltro se agarra ao meu rosto como os filhotes de alien daquele filme de super-heróis americanos que destroem um país caribenho fictício. Vê? Tudo gira em torno da respiração.
Clarice faz isso com a gente. Vou voando para Portugal, como detetive da língua. Foi lá que essa loucura começou, não foi? Hoje já não importa se havia tupi e toda a vastidão mais; ou se ainda há tupi — que venho aprendendo uma coisa ou outra preguiçosamente, porque sou dessas pessoas ridículas que se importam só por se importar — porque me expresso mesmo é pelo português. E falo pelos cotovelos.
Quem inventou isso de falar pelos cotovelos? Clarice faz isso com a gente. A diaba.
Atos falos da língua.
(Essa foi péssima).
Ps: Esse texto foi escrito dia 29 de dezembro do último ano. É um extrato direto do que escrevi durante o vôo (adicionei citações de livro depois, claro). A essas alturas já voltei de Portugal e estou cheia de caraminholas na cabeça.
Uma nota sobre o futuro desta newsletter
Um segredo que posso contar para você sem pestanejar é que tenho entendido que eu, enquanto ser humano, sou legião. Sim, tipo o demônio. Dito isso, posso confessar que muitos dos meus eu’s se revelam pela palavra escrita (aposto que com você é assim também, mas se não for, experimente). Estou gostando de botar a carcaça de alguns deles de molho em água salgada, como uma conserva, para que você prove o gostinho por aqui.
Para não perder essa boquinha, vou continuar escrevendo na newsletter como a louca que sempre fui. Mas vou dar espaço para a não-tão-louca que finjo ser na maior parte do tempo.
O que isso quer dizer, afinal?
Que eu vou fazer uma edição especial da newsletter só sobre organização e bullet journal, separada dessas crônicas que brotam por aqui de tempos em tempos.
Na prática, você vai receber um email a mais por mês. Só isso.
Desculpe os garranchos.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi