Hoje eu estou pensando nos meus desconfortos e descontentamentos com a febre do movimento minimalista. Mas como bem disse a Ariela na newsletter A Diletante, “o mundo não precisa de mais críticos. De fato, ele já está coberto de pesticidas e de quem escreve para incomodar, para chocar, para revelar o vazio. Parece-me bem pequenino o mérito de quem denuncia o que é feio, de quem aponta como abandonado o terreno baldio.” Assim, do meu descontentamento, resolvi criar algo novo.
Eis aqui o meu Manifesto antiminimalista.
Um pequeno parênteses
O conceito de minimalismo nasceu no mundo das artes antes de bater à porta de nossas casas e exigir que diminuíssemos nossos guarda-roupas. Os artistas do minimalismo surgiram na década de 1960, produzindo trabalhos como uma reação ao expressionismo abstrato (imagine pinturas que são um pandemônio de cores e formas difusas). No minimalismo, a simplicidade das composições usava a geometria e a ausência de simbolismo para buscar um certo tom de anonimato e vazio estético.
No século 21, o minimalismo voltou com tudo, mas dessa vez como estilo de vida. Com o desgastado mote “menos é mais”, canais de YouTube foram criados, documentários foram filmados e livros foram escritos para demonstrar e explicar como uma vida mais simples e mais leve traz consigo o segredo da felicidade.
Com um apelo de contracultura e procurando uma alternativa ao consumo excessivo, o movimento minimalista vem como uma resposta direta a muitas crises geradas pelo capitalismo. Mas parece que, nos últimos anos, ser minimalista virou mais questão de urgência do que escolha, ao mesmo tempo em que ser minimalista virou uma espécie de status superior nessa intrincada rede de identidades e desejos que se cruzam pelas redes sociais.
É aí que os conflitos e desconfortos começam.
A canadense Jia Tolentino expõe bem o fenômeno em um artigo extenso para o The New Yorker, onde ela escreve:
"Em 2008, a crise no mercado de imóveis e o colapso dos bancos transformou a fantasia de consumo fácil em sinônimo de humilhação e destruição; para muita gente, aprender a viver com menos virou uma necessidade. Ver o neominimalismo como uma reação cultural provocada por uma ruptura financeira é tentador — e talvez seja isso mesmo, em parte. Mas, ao mesmo tempo em que [Marie] Kondo e sua turma popularizaram uma forma de humildade material, o minimalismo transformou-se numa crescente ambição por um modo de vida luxuoso. A hashtag #minimalism traz mais de 17 milhões de fotos no instagram; a maioria dos posts no topo mostram o interior de lugares sofisticados. Em abril, Kim Kardashian West apareceu em um vídeo da Vogue caminhando por sua mansão californiana de 6 milhões de dólares, um palácio rígido, vazio e monocromático que ela descreve como um ‘monastério minimalista’.“ (tradução minha)
Problematizando
Hoje, as pessoas desejam consumir uma estética minimalista. Depois de décadas acumulando tranqueiras, é difícil reproduzir os ambientes limpos, leves e claros que vimos no instagram. E dá-lhe projeto de desapego, que nunca se torna uma resolução de vez única, pois a gente continua vivendo e se apegando a coisas novas o tempo todo. Isso não é uma defesa do acúmulo, mas uma inquietação. Parece que o descanso visual promovido pela estética minimalista virou só mais um objeto de desejo nessa seara consumista em que vivemos.
O minimalismo como ideia também me incomoda, pois busca uma neutralidade existencial que não combina com o movimento irregular da vida. Essa neutralidade pastel virou sinônimo de elegância, assim como "viver leve" é sinônimo de superioridade moral. O minimalismo nem é mais um modo de se viver, mas um sonho a ser conquistado.
A ideia de vazio que o minimalismo traz parece uma reação ao excesso de imagens e informações a que somos expostos diariamente. Mas que política pessoal estamos fazendo quando escolhemos nos esvaziar sem pensar na raiz dos incômodos? As lacunas abertas pelo minimalismo me parecem pequenos espaços ocos, onde circular novidade é proibido, pois vai preencher o lindo espaço vazio que sobrou.
Contracorrente
Foi lendo livros sobre o assunto e pensando na sua decadência, que me ocorreu a ideia de uma contracorrente. Um antiminimalismo, uma busca por uma verdade ventilada, mais ampla, sem respostas simples ou receitas prontas. Com espaço para circular ideias novas, sem medo de preencher o vazio que as ideias velhas deixaram para trás.
Senti vontade de inaugurar esse tal antiminimalismo, como um exercício de pensar um futuro sustentável não apenas para nossas necessidades fisiológicas básicas, mas para a nossa mente também.
Um jeito de abarcar as complexidades e contradições da vida de quem mora em grandes metrópoles. Não um estilo de vida, mas um princípio de vida. Um jeito de contemplar os problemas que nenhuma frase pronta consegue resolver.
Um antiminimalismo que permita me manifestar.
Manifesto antiminimalista
O objetivo do minimalismo é consumir menos produtos; para isso, difunde-se a ideia de que adquirir produtos mais caros, de maior durabilidade, quase sempre inacessíveis para a maior parte da população, é a única saída. O objetivo do minimalismo é possuir menos coisas, um conceito fundado na premissa de que todos nós temos tudo que precisamos e mais um pouco. O objetivo do minimalismo é esmagar traços de personalidade com a desculpa de serem esses os excessos do ser humano. O objetivo do minimalismo é não deixar espaços para dúvidas, contestações e diferenças. O objetivo do minimalismo é inferir ao indivíduo a culpa pela falha do sistema, pela desesperança que nos trouxe o capitalismo e pela educação consumista que foi construída coletivamente ao longo de décadas.
O minimalismo é o adversário do antiminimalismo.
O antiminimalismo é uma recusa aos espaços monocromáticos, onde o infinito é ocupado pelo monótono, produzindo a veneração ao vazio. O antiminimalismo é contra o desejo de se esvaziar. O antiminimalismo é o direito de réplica à repetição de padrões, à normalização do neutro, daquele que não expressa nem isso, nem aquilo; se encontra num equilíbrio fantasioso, um espaço que não existe. O antiminimalismo é contra o vazio.
O antiminimalismo é carregado de significados.
O antiminimalismo propõe a retomada da escolha como expressão, não apenas como uma ação utilitária. O antiminimalismo procura construir novidades sobre os escombros da desconstrução pessoal sofrida pelo indivíduo. O antiminimalismo abraça o poder da troca, da comunidade e da construção coletiva. O antiminimalismo é a favor da apropriação democrática do ambiente urbano, do preenchimento dos espaços vazios nos bairros, da apropriação dos prédios abandonados e da ressignificação dos objetos. O antiminimalismo busca a autonomia individual através do esforço coletivo. O antiminimalismo é reciclável, espaçoso e cheio de ideias. O antiminimalismo instrumentaliza o pensamento crítico e possibilita a vida.
O antiminimalismo não é uma busca pela acumulação, mas uma exploração de propósitos. O antiminimalismo não é essencialmente maximalista, mas pode ser. O antiminimalismo não é um padrão, mas uma abertura para romper com a rigidez dos arquétipos e dogmas do século 21.
O antiminimalismo é a celebração das diferenças que tornam seres humanos agentes com vontade própria.
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O antiminimalismo é tudo.
E é nada.
É um texto flutuando em uma tela.
O texto acima foi revisado pela minha querida amiga Leticia Dáquer, tradutora, blogueira e podcaster no incrível Pistolando Podcast. Chamem a Let para revisar e traduzir os textos de vocês!
Let, valeu! ♥️
Vem aí
No mês de junho eu parto em uma viagem a pé, sozinha, levando apenas uma mochila nas costas e um desejo enorme de amar o mundo. Anotem nas agendas e acompanhem a viagem por aqui e pelo Instagram.
Devo dar mais detalhes em breve. Por enquanto, você arrisca adivinhar para onde eu vou?
Satélite de recomendações
Podcast
O papo do Sidarta Ribeiro sobre o futuro do planeta, no podcast Ilustríssima Conversa, está animal. Escuta lá.
Curso
Ano passado eu fui aluna do Alex Castro no curso A Grande Conversa Brasileira. Os papos renderam uma pesquisa para o romance que estou escrevendo e me motivaram a cursar uma disciplina de Literatura Brasileira na Universidade de Dalarna, aqui na Suécia.
Ontem o Alex começou uma nova turma do curso Grande Conversa Fundadora. Eu recomendo para todo mundo que tem um interesse mínimo por literatura e mais: não se assuste com as leituras, ler os textos não é obrigatório. O Alex tá ali para fazer as pessoas mais interessadas neles e dar um contexto histórico para obra. Imperdível.
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Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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