Máquinas maravilhosas e seus ciborgues de estimação 🖨️
Do silício ao silicone, Donna Haraway, humanismo e teorias da teoria
TEMPO DE LEITURA: 5 minutos.
Pequena nota: esta newsletter foi do zero aos mais de 6 mil leitores em 3 anos, escrita por uma pessoa anônima (sem grandes perfis em redes sociais etc). Para quem tiver curiosidade sobre esse percurso, eu dei uma entrevista bem legal para o jornalista Rodrigo Ghedin, do Manual do Usuário. Confiram o grande segredo em órbita lá.
O homem é um velho conhecido nosso usado para se referir a todos os homens, que na verdade significa todas as pessoas, a humanidade, já nos cansamos de lembrar. Assim como a beleza, o conceito de humanidade foi moldado pelo olhar masculino e pelo existir masculino. Outra coisa moldada por ele, não pelo olhar mas pelo toque, é o celular. A maioria das mulheres cisgênero não consegue alcançar a tela do celular de um lado a outro usando apenas o dedão da mão que segura o aparelho, pois celulares são desenvolvidos e testados majoritariamente por homens cisgênero. (Depois de pensar dois segundos sobre isso, qualquer pessoa pode imaginar que esse problema existe para alguns homens também, é claro. Sempre há exceções. Mas o nome já diz, exceção. Você sabe.) Considerando que hoje em dia é impossível desfrutar de uma cidadania plena sem possuir um celular — serviços bancários, autenticações de acesso, comunicação com prestadores de serviços, atendimento ao consumidor, etc estão totalmente centralizados no acesso via smartphone —, podemos dizer que existir depende da posse de um desses aparelhos. Crianças e adolescentes que não têm um celular aguardam com ansiedade o momento de possuir um, como um rito de passagem. Ainda sim, falhamos. Falhamos quando não pensamos em todas as pessoas na hora de desenhar o aparelho do qual todo mundo depende para desfrutar de uma vida funcional. Assim como falhamos ao ainda usar homem para se referir a humanidade inteira.
Há uma simbiose profunda entre você e o celular, algo que vai mais além do que o vício em deslizar a tela para baixo até cansar. Depois que Donna Haraway popularizou o termo ciborgue, virou lugar-comum dizer que qualquer pessoa que usa óculos, por exemplo, é um ciborgue. Isso porque uma das definições de ciborgue é um organismo vivo que usa tecnologia para melhorar a si mesmo. Uma pessoa usando marca-passo ou uma prótese de perna também é um ciborgue. Mas essas são coisas fáceis de entender, pois são concretas, visíveis e palpáveis. A simbiose da qual quero falar é totalmente abstrata. É o vínculo entre humanos, memória e pensamento — através das máquinas.
O humanismo colocou o homem como responsável central pelo desenvolvimento do planeta, fazendo dele o protagonista da vida. Por um tempo pareceu que foi um jeito de se livrar da religião e guiar-se pela ciência, mas, na verdade, era uma outra coisa, muito mais sombria. Então veio o pós-humanismo e fez a pergunta de dois bilhões de reais: mas o que é um homem? Ou ainda melhor: quem é esse homem? Então as teorias anticoloniais e feministas começaram. É fácil tecer críticas ao humanismo agora que estamos vendo o colapso do planeta ao vivo, mas o fato é que ainda vivemos no pensamento humanista e ele tem tudo a ver com o poder nos dado através das máquinas. Máquinas criadas nos moldes dos homens. Não, não estou dizendo que o celular se parece com o ser humano. Mas ele é um herdeiro do computador que, por sua vez, foi criado à imagem e semelhança de um escritório. Por isso nos organizamos entre pastas, documentos, lixeiras e desktops, pois a maneira como os sistemas são desenhados é uma imitação de algo que já conhecíamos antes. Pode ser que hoje em dia a tecnologia digital esteja inserida em todas as camadas da nossa vida, mas por um longo período antes disso ela era quase exclusividade do ambiente de trabalho — e foi desenvolvida nesses formatos. E antes de ser herdeira do escritório, a computação era ferramenta do exército, mas isso fica para um outro texto (ou você pode se aquecer lendo este post da Clara Browne, que eu acabo sempre chamando de Brownie).
Há muitos muitos anos, talvez em outra vida, eu trabalhei dando aula de programação e informática para estudantes de uma escola municipal da periferia de Porto Alegre (rindo aqui porque eu morava na referida periferia também). As crianças mais novas ainda não sabiam ler e escrever, então nós usávamos um software desenhado totalmente em linguagem gráfica, feito para elas. Nunca mais esqueci do símbolo de deletar: uma bomba. Crianças muito pequenas, que ainda não escrevem, ainda não usam borracha para apagar erros. O único conceito de deletar, exterminar e apagar que elas têm vem da vida (e dos desenhos animados), então explodir algo fazia todo o sentido. E, de fato, as crianças entendiam muito rápido como usar o software. Até hoje me impressiona o poder do simples ato de sair da lógica do escritório para desenhar um sistema.
No lugar da pergunta pós-humanista, “o que é um homem?”, eu me pergunto: “o que é uma máquina?” ou “a serviço de quem está uma máquina?”. Quando penso em máquina, não me recordo de uma máquina de lavar, mas de um computador. Um sistema inteligente. Mas ambos deveriam estar contidos na pergunta. Em uma progressão (ou distanciamento) da teoria do ciborgue, Donna Haraway passou a escrever sobre a teoria das espécies companheiras. Eu acho que seria mais fácil chamar de “teoria dos sistemas vivos”, onde ela traz o conceito das espécies que acompanham a humanidade e vice-versa. O ser humano, então, não é uma unidade de vida avançando sozinha pelo universo, mas sim parte de um sistema composto de milhares de microrganismos (pense nos bichinhos que vivem permanentemente no seu estômago, por exemplo, ou nos micro-ácaros que habitam sua pele, independente de quantos banhos você tomar), cuja existência depende de inúmeras outras espécies. Pense nos cães e gatos que nos acompanham. No papel dos animais na agricultura, urbanização e desenvolvimento em geral de tudo que temos no planeta hoje. Haraway vê pessoas como “animais humanos”, pois coloca a relação simbiótica entre humanos e animais como uma via de mão dupla, transformando-nos mutuamente. Como um grande sistema interligado.
Na rabiola dessa teoria, a tecnologia também está contida na existência humana em uma relação simbiótica. E hoje, muito mais óbvio do que em qualquer outro período da história, nós estamos essencialmente ligados à vida por intermédio de sistemas digitais. Uma limitação evidente desse intermédio é de caráter da própria tecnologia: ela acontece através de dois sentidos. Visão e audição. Por isso texto, áudio, imagem e vídeo facilitam e limitam essa experiência. Mas a influência disso tudo vai parar no corpo (a influência das imagens e dos discursos que vemos podem nos levar a mudar coisas na nossa aparência e comportamento, daí eu tenho usado o termo “do silício ao silicone” com amigos, em uma alusão ao material silício, usado nos celulares, e o silicone das próteses) e no pensamento (usar a internet como segundo cérebro nem precisa de exemplos). E é essa última simbiose, a do pensamento, que me provoca mais.
A diferença entre natureza e tecnologia é que nós fazemos parte da primeira e criamos a outra, mas na prática a humanidade usa as duas de modo exploratório. Nos dois sentidos da palavra explorar: estudar e abusar. Isolando a tecnologia nessa análise bruta, nós estamos falhando em explorá-la de verdade, pois a tornamos apenas mais um meio de controle do pensamento e da criatividade.
Como você desenharia um sistema operacional do zero, sem usar os conceitos de arquivo, pasta, lixeira, calculadora etc?
Eu estou aqui pensando.
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Cartas de Hélio Oiticica e Lygia Clark, do Rodrigo Hipólito
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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ps: estou vivendo um episódio depressivo, caso você tenha reparado no silêncio. Mas tô saindo do poço. Pode deixar.
Este ciborgue aqui adorou acompanhar sua reflexão.
talvez usasse uma fogueira para representar o “deletar”, já que praticamente tudo que vai para o fogo vira pó e se extingue.