Esse é um texto sobre tecnologia, mas não é sobre ela como ferramenta.
É sobre a tecnologia como meio.
Não é questao de originalidade e nem de imitaçao. A digitalização da vida nos transforma em fragmentos, ou apenas projeções das pessoas reais que somos fora das telas. Não sei se estamos realmente em busca da pessoa original por tras dos pixels, e também suspeito que possamos ser todos cópias interagindo com cópias.
Paradoxo de Teseu
(Se voce conhece o paradoxo de Teseu, pule para a próxima parte do texto.)
Digamos que temos um navio — o famoso navio de Teseu — e um belo dia um mastro do navio se quebra. Então nós substituímos por outro mastro, idêntico ao anterior. Anos depois, os remos do navio se perdem. E nós os substituímos com novos remos. Mais tarde, a carcaça do navio fica muito velha e nós começamos a remendar pedaço por pedaço com madeiras novas. E assim sucessivamente, até que não nos reste nenhuma peça original do navio.
O paradoxo de Teseu consiste no seguinte dilema:
O navio continua sendo o mesmo navio de Teseu, mesmo com todas suas partes substituídas?
Desduplicação
Muitas figuras nos bancos de imagem da internet (Unsplash, Pixabay, Pinterest, Shutterstock etc) são muito parecidas ou até mesmo quase iguais. Além disso, frequentemente acontece de dois ou mais usuários enviarem a mesma imagem para o mesmo serviço ou rede. Esse tipo de duplicação não faz sentido no ponto de vista técnico, pois há duas ou mais imagens ocupando espaço onde você poderia ter apenas uma. Ou, por exemplo, você tem um número absurdo de imagens de céu azul com nuvens brancas, quando obviamente a maioria dessas imagens é muito parecida, independente dos detalhes. Uma técnica relativamente comum para resolver isso, economizando espaço de armazenamento e otimizando a velocidade das buscas, é a desduplicação.
Você pega um pedaço de imagem que é muito similar ao pedaço de outra imagem, e guarda apenas uma partezinha para ambas. Na hora de mostrar as imagens para o usuário você usa o mesmo pixel nas duas. Assim, as imagens se encaixam como quebra-cabeças de peças recicladas, ocupando menos espaço de armazenamento.
Nessa situaçao, uma imagem reconstruída de pixels reutilizados continua sendo a mesma imagem, mesmo com todas suas partes substituídas?
Invertendo a ordem dos fatores
O princípio da desduplicação não é novo. Essa lógica de re-uso e multiplicação é largamente usada em vários lugares da internet.
Inclusive neste e-mail (ou página) que você está lendo agora.
Lá vem o Duchamp
De novo. Eu sei que já falei desse artista e desse obra aqui antes, mas vou me dar ao luxo de reusá-los. O artista Marcel Duchamp fez muitas coisas incríveis, mas ele é, acima de tudo, conhecido pela obra de arte A fonte.
“[A fonte] é uma réplica de um mictório de porcelana que foi originalmente comprado pelo artista em 1917, de uma firma de materiais de encanamento, em Nova York. Duchamp simplesmente assinou o objeto com o pseudônimo R. Mutt e depois o inscreveu numa exposição.”
Artigo Fonte, do site História das Artes.
Então Duchamp comprou um urinol, assinou, botou em uma mostra de galeria e o objeto virou item de exposição.
Como um objeto ordinário do dia a dia pode ser elevado, ou destacado, a categoria de obra de arte? O que Duchamp quis dizer com isso? Os críticos estão há 100 anos refletindo.
Em um mundo industrializado, de fabricação de objetos em série, é justo atribuir valores diferentes para um original e uma réplica? E no caso de qualquer produto fabricado em escala industrial, é possível discernir um original de suas cópias? Isso sequer é importante? Por quê?
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O valor do objeto e o valor da imagem
Em uma época recente, eu sustentei o hábito de navegar horas e horas por lojas de roupa online, como Shein, Monki etc. Eu enchia um carrinho de compras, às vezes gastava horas e horas navegando e escolhendo peças, e depois acabava não comprando nada. Deletava tudo ou esvaziava o carrinho sem dó. E seguia a vida como se nada tivesse acontecido.
A razão principal é que não compro produtos fast fashion se puder evitar. Mas a razão secundária da época era que simplesmente não precisava de roupas novas. Era um fato. Não tinha nenhuma necessidade no momento.
Porém, por um tempo, saber disso não fazia com que a vontade de ter roupas novas fosse embora. Porque vontade e desejo não costumam seguir uma lógica racional clara. Mas o ato de colocar itens no carrinho de compras foi, sozinho, suficiente para resolver essa vontade maluca de consumo.
No nível do meu subconsciente, a imagem da peça de roupa tinha o mesmo — ou talvez até mais — valor do que a roupa em si. Inclusive porque eu poderia ter todas as peças que eu quisesse naquela pequena realidade virtual na tela do computador; coisa que na vida real jamais aconteceria.
“Em termos sucintos, a ‘economia da atenção’ consiste em mercadejar com o olhar, com os ouvidos, o foco de interesse e a curiosidade um tanto aleatória dos consumidores. [...] O capitalismo dos nossos dias é um fabricante de signos e um mercador de signos – as coisas corpóreas não são mais o centro do valor.”
Trechos de A superindústria do Imaginário, de Eugênio Bucci.
As imagens nas redes sociais
Parece que o processo de industrialização passa também pela nossa produção de conteúdo pessoal. Dentro das redes sociais, a imagem vira o objeto da atenção. Quando postamos uma foto online, toda vez que uma outra pessoa vê essa foto, ela está vendo uma cópia.
Pense em um grupo de Whatsapp em que alguém mandou um meme. Aquela não é apenas 1 imagem, mas uma das infinitas cópias dela que sao baixadas da internet toda vez que alguém clica para ver a imagem.
Todo mundo está cansado de saber que selfies e vídeos de pessoas falando de frente para a câmera são mais populares e agregam mais visualizações e likes. Toda vez que tenho algo importante para comunicar no instagram, primeiro uso uma imagem do meu próprio rosto para fazer com que mais pessoas vejam a informaçao. Mas quando o objeto-imagem é a gente mesmo, é como se, na economia da atenção, a moeda fosse o “eu”.
Nossa vida se distribui em infinitas cópias cujo destino estará sempre fora do nosso controle.
Somos arte e produção em larga escala de nós mesmos?
Retrato de Marcel Duchamp, de Jean Crotti, 1915.
Será que daqui 300 anos, depois de tanta desduplicação, os arqueólogos da internet serao capazes de encontar o “eu real” das nossas selfies?
Recompensa para apoiadores
Essa semana fechei o primeiro ebook para os apoiadores. Minha ideia era enviar hoje, mas por motivos de força maior não consegui terminar de diagramar e fazer uma capa decente. Então, vou enviar uma edição especial só para apoiadores entre sexta e domingo, com o ebook e a enquete sobre as pautas do mês que vem. Obrigada.
Se você quer ver esse ebook, ainda dá tempo de entrar no time de apoiadores.
Vejo vcs em breve.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Eu tenho esse mesmo vício de encher carrinhos e larga-los, mas sou fancy nesses momentos de luxúria e brinco de comprar na Farfetch e afins. Adorei o texto e na real ele (de alguma forma) me conectou muito com o conceito de NFT, que é como dar a uma imagem, por exemplo, o contrato de que ela é a real. Btw, queria me desduplicar, será que rola? E nossa cartinha, hein?
Que incrível. Estou lendo A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica do Walter Benjamin e pensando muito nisso. Só que seu texto deu essa perspectiva ótima das redes sociais. Que medo.
E adoro fazer isso com compras. Encho meu shopee de favoritos, crio wishlists na amazon, leio unboxing de coisas até ter tanto aquilo em mente que é como ter em mãos. Daí largo e esqueço, sem tirar um centavo do bolso. Na sua descrição sabe do que lembrei? Das bonecas de papel que eu brincava com mamãe. Ou um site parecido com o We♥It, mas era de montar looks, mesma ideia das bonecas ou vision board.