Olá. Meu nome é Vanessa Guedes e eu estou fazendo o Caminho Português Central em direção a Santiago de Compostela. Faço a caminhada sozinha, mas não me sinto solitária. Me sinto viva.
Na sexta eu cruzei a fronteira de Portugal com a Espanha a pé. Foi um momento bonito e marcante. Pretendo falar com mais detalhes do caminho quando estiver de volta em casa, com calma.
Fiquem aqui com um pedacinho minúsculo do que está sendo essa aventura.
O caminho anda dentro da gente
A essa altura eu estou na Galicia e caminhei cerca de 230km em 12 dias. Estou há 4 dias andando de sandálias ao invés de botas ou tênis porque é o único jeito que dá (não foi uma escolha).
Meus pés estão inchados, estou prestes a perder uma unha, mas nunca me senti tão forte na vida. Corpo cansado, mente descansada. Tenho visto coisas impressionantes todos os dias.
À parte essa dureza e dor nos pés - dor que geralmente vai embora depois que começo a caminhar - todo o resto do meu corpo está num estado de êxtase que nunca senti antes. A experiência da exaustão que nunca é interrompida está me contorcendo de maneiras enlouquecedoras. Mas de um jeito bom. Transformador. Algo dentro de mim se quebra todos os dias. Mas uma outra coisa nova sempre se constrói também.
Houve um dia bem específico em que o desgaste físico tornou-se essa fonte inesperada de força, como uma chave girando na ignição e ligando algo adormecido. É um tipo de força que eu desconhecia. Não é aquela força masculina, solar, brutal e absoluta. É uma força que vem da terra, das plantas, do vento fresco no cabelo: uma disposição em estar presente. Em ser absorvida pelo mundo.
Clichê: já não sou a mesma pessoa.
Houve um dia em que meu pé estava tão inchado e com bolhas que eu sentei na beira da estrada e coloquei meu único outro par de calçados: um chinelo havaianas. Lembre que eu estou carregando uma mochila com todas as coisas que preciso todos os dias, não tenho como carregar mais do que o essencial (duas mudas de roupa de caminhada, uma camiseta+legging para vestir depois do banho no albergue e dormir, uma toalha, um saco de dormir, produtos de higiene, roupa de baixo, casaco, capa de chuva para usar na estrada, água para caminhada, primeiros socorros... isso tudo dá uma mochila de 8kg). Nesse dia, uma montanha de 500m de elevação me aguardava e eu escalei pedras e barro calçando.. um par de chinelo havaianas. Por 17 km. Se alguém me contasse, eu não acreditaria. Mas eu estava lá e fiz, não porque me voluntariei para fazer desse jeito, mas porque era o único jeito que eu poderia fazer na hora. Quando cheguei no vilarejo lá embaixo, me sentia em paz e nada me doía. As pessoas vinham falar comigo e oferecer curativos, remédios, queriam falar com a "brasileira que subiu a montanha de chinelo". Mas me procuravam como se eu tivesse vivido uma superação, como se eu tivesse algo a contar para eles, algum segredo que descobri por meio do esforço.
A verdade é que eu passei o dia admirando a paisagem, curtindo o som do rio que batia nas pedras das cascatas à minha direita, me apoiando nas rochas, vivendo um passo de cada vez. Eu, que de criança guardava um medo irracional de sujar os pés no barro, que sempre achei que só adultos conseguiam andar na lama sem sujar os pés, eu aprendi ali naquele dia a pisar leve, muito leve, distribuindo o peso do corpo pela sola dos pés como quem aprende a caminhar pela primeira vez.
Houve um dia que choveu sem parar enquanto eu caminhava por vias romanas de pedregulhos e eu chorei por horas sozinha na estrada, cercada dos vinhedos lindíssimos do norte de Portugal, quando uma mulher surgiu na estrada e sem falar nada olhou para mim e fez um gesto levantando o dedo indicador em direção ao céu. Sem qualquer troca de palavras, eu entendi. Faltava 1 km para chegar a Ponte de Lima, meu destino daquela tarde. Eu juntei as duas mãos na frente do peito e agradeci efusivamente. E tornei a chorar. Um quilômetro para atravessar a ponte! Um quilômetro.
Foi o quilômetro mais longo da minha vida.
Quando vislumbrei a ponte, não a atravessei. Sentei em um restaurante bem na frente dela, tremendo de frio depois de ficar horas molhada, deixando o corpo esfriar de repente com a pausa no exercício. Pedi uma sopa de legumes e uma taça de vinho. Foi a melhor refeição da minha vida.
Quando eu finalmente botei o pé na ponte, o sol se abriu e eu tirei uma foto para lembrar, para provar para mim mesma que não estava louca e aquele par de nuvens se afastando no céu não era a composição de um delírio.
Houve um dia em que desisti totalmente de usar minhas botas, essas botas que eu amo tanto e foram tão confortáveis até que eu comecei a andar dezenas de quilômetros por dia, todos os dias. E numa lojinha de beira de estrada, comprei um par de sandálias. Queria preta, mas não tinha meu número. Tive que aceitar o par de tiras marrom, aquela sandália com ar de apóstolo, de peregrino do século 14. Eu estava com o cabelo contido em uma trança grossa que descia até a altura do estômago. Quando a peregrina colombiana, companhia de cervejas nos bares do caminho, me viu chegando exclamou "tu estás igual a Santa Tereza!". Eu levei um susto. Minha avó paterna se chamava exatamente Santa Tereza, assim mesmo, com Santa no nome, e por um segundo eu achei que a mulher dizia que eu parecia com minha avó. É claro que ela falava da própria santa, não de minha avó, mas o arrepio ficou.
O Caminho é cheio dessas coisas. Basta prestar atenção. Basta estar aberta.
Hoje escrevo do tecladinho do celular, ouvindo os carros passarem zunindo do lado de fora, numa pensão qualquer no noroeste da Espanha. Esse negócio de ir parando e procurando pouso todos os dias no lugar que der, dormindo na cama que der, é um outro texto que eu quero escrever para vocês.
Apenas 16 km de estrada separam eu e Santiago de Compostela agora.
Recomendações
Hoje vou deixar uma recomendação-jabá.
Saiu um conto de ficção dessa que vos escreve lá na newsletter Faísca (assina aqui). É um conto de fantasia chamado Madame Futuro, sobre um dragão. Você pode ler gratuitamente neste link. De quebra tem um outro conto maravilhoso da autora Ana Carolina Borges (estou super bem acompanhada, né).
E, como se não bastasse, o talentoso Ariel Ayres narrou a voz de Jorge, meu dragão, no projeto Assovio, vai lá ouvir (são só 6 minutinhos).
Eu amei escutar meu texto na voz gostosa desse cara gentil e escritor de mão cheia.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de abraço.
Vanessa.
Que incrível! Obrigada por compartilhar! 🥰🥹
Que lindo seu relato, amiga! Corajosa, destemida, uma força em mulher. Você é maravilhosa, saiba disso. Que seu caminho ainda te dê muitas surpresas (espero que todas boas, ou pelo menos, a maioria delas). Amo você <3