Novas Órbitas: Bailando com John Wick
Texto de Ricardo Oliveira sobre dança contemporânea, cinema asiático e tragédia grega
Oi, gente :)
Hoje é o terceiro texto dos 5 selecionados para o Novas Órbitas, projeto dedicado a mostrar outras newsletters por aqui.
O ensaio de hoje é sobre uma franquia de filmes que conheço muito pouco, pois só assisti ao primeiro. John Wick. Mas além de ter muitos leitores aqui que gostam da série, eu curti esse exercício de lembrar da relação entre luta e dança (entre outros). Fiquem com o texto do jornalista e escritor da newsletter Ricardo Oliveira.
John Wick: sobre dança contemporânea, cinema asiático e tragédia grega
Por Ricardo Oliveira (originalmente publicado aqui)
Na primeira vez em que assisti à saga John Wick tive a estranha proximidade com memórias assistindo a espetáculos da Companhia de Dança Deborah Colker. A razão estava na tela de duas formas: especificamente no terceiro filme, Parabellum, o roteiro decide explicitamente nos levar ao fato de que a dança é uma inspiração para a história dos filmes. Para se safar de mais uma perseguição neste terceiro capítulo, o personagem de Keanu Reeves decide voltar às suas origens e encontra com Angelica Huston em um teatro. Ela interpreta uma bielorrussa que é mais uma dessas figuras míticas da série: apenas conhecida como “Diretora”. A personagem dirige um teatro que, na cena, há no palco uma bailarina ensaiando à exaustão e, em salas à parte do mesmo prédio, há homens de collant treinando luta greco-romana. Collants masculinos, não à toa, costumam ser uma espécie de referência involuntária em figurinos de espetáculos de dança contemporânea.
O filme não hesita então em nos deixar à mostra seu principal artifício temático. Os homens treinando a luta repetem movimentos em sequência, como se costuma fazer em treinos de artes marciais dos mais variados tipos. Repetir é gerar memória muscular e, potencialmente, buscar a perfeição. Exatamente como na dança. Não como o ballet clássico apresentado por duas vezes em cenas deste mesmo terceiro filme, mas especificamente como a dança contemporânea, onde há específicas intenções de desconstrução, estranhamento e ressignificação do corpo no palco. Em uma de suas maiores proximidades com a luta, por exemplo, há dinâmicas de “improvisação por contato”, onde o(a) bailarino(a) testa toques e respostas diante de outros corpos e objetos — como quem tenta encontrar os melhores movimentos para um certo momento ou contexto.
O que assistimos em um palco muitas vezes é o resultado não apenas de muito ensaio, mas de meses de uma criação que pareceria ainda mais caótica que o resultado final para olhos não acostumados. E é dessa forma que toda a tetralogia de filmes de John Wick dá um passo além e me levava à segunda da memória: no momento em que decide colocar em cena bailarinos e lutadores, a narrativa está também falando sobre si mesma em três camadas diferentes: o balé e a luta como (1) símbolos da excelência do leste europeu no nosso mundo não ficcional; (2) metáfora para a jornada do próprio Wick, oscilando constantemente entre (ou buscando a soma de) destreza e força; (3) uma referência para o fato de que toda a violência que vemos em tela é também coreografia.
Eis, então, a segunda parte da memória: sim, ver John Wick matando remete a bailarinos no palco de um espetáculo de Deborah Colker. Não é uma observação original em seu sentido amplo. Quem assiste e gosta dos filmes de artes marciais sempre se depara com sequências que de fato são chamadas de “coreografadas”. Para cada um dos filmes, Keanu Reeves ensaia em média por um semestre inteiro. “Ele alcança o mesmo nível que qualquer dublê em capacidade física”, diria o próprio dublê de Reeves — diga-se de passagem, consolidando a imagem que o ator tem de fazer a maior partes das suas cenas de ação. Mas há uma diferença importante, e ela está na figura de seu diretor, Chad Stahelski.
Stahelski, diretor de todos os filmes da série John Wick, foi o dublê de Reeves no primeiro Matrix, posteriormente coordenando a equipe de dublês das sequências do filme. Em um set de filmagem, um dublê pode saber fazer bem seu trabalho, mas alguns em especial sabem também onde a câmera deveria estar. Explico.
Vamos supor que estejamos observando a gravação de uma cena em que John Wick dá um chute em um vilão qualquer e esse personagem é arremessado contra um carro. Para essa cena acontecer em termos de produção, o tal capanga provavelmente será um dublê (e não um ator comum), que estará com uma roupa específica de proteção por dentro do seu figurino. Com partes acolchoadas e algum ensaio para achar os movimentos certos, o dublê talvez sofra alguma pressão, talvez até alguma pancada, mas dificilmente vai se machucar de verdade. Mas onde deve-se colocar a câmera para que ela tanto alcance o impacto desejado no plano cinematográfico quanto no mascarar que aquele é um movimento planejado?
Essa pode até ser uma tarefa fácil para uma ou duas cenas, mas não para um filme de ação de 120 minutos com sequências de pancadaria/perseguição intensa a cada 15 minutos. Até porque há outros elementos importantes: deve parecer mais realista (como John Wick) ou mais plástico como Matrix?; são apenas dois personagens lutando ou vários?; temos props, como armas, paredes quebrando ou a cena acontecerá dentro de um carro em movimento? Tudo isso será vital para saber onde colocar a câmera ou então outra pessoa terá muito trabalho extra pela frente. O editor do filme potencialmente terá que resolver a fluidez que a decupagem dos planos cadenciados deve trazer à cena. O que pode se tornar um desafio que fãs de filmes de ação conhecem bem quando mal resolvidos, basta lembrar de algumas cenas da série de filmes sobre Jason Bourne.
A cena está lá. Sabemos que tem duas pessoas se batendo. Mas é possível entender, assistindo apenas uma vez, o que de fato aconteceu? Daí a importância da figura como Chad Stahelski ser vital para uma série de filmes como John Wick ser tão elogiada por suas sequências de ação. Mas não apenas por isso, já que a lista de dublês que se tornaram diretores é grande e no máximo a gente conhece uns dois ou três nomes ali.
Stahelski vai além em sua direção no momento em que decide que é imprescindível para fazer um filme de ação que se gaste 6 meses treinando e ensaiando cada uma das cenas de luta antecipadamente. É o diretor colocando as cartas na mesa: para ser bom, isso precisa estar garantido. Mas como transformar tudo isso em dança e, por consequência, em bom cinema?
Saber onde colocar a câmera para mostrar o melhor movimento é similar à direção de coreografia que sabe para qual lado está a plateia. Sem a possibilidade de fazer decupagens, planos fechados, a cena no teatro é a nossa grande tela. Nossos olhos passeiam em busca dos pontos que nos chamam mais atenção. E é parte desse processo de capturar olhares, direcionar interesses e construir sensações. Na dança contemporânea, é também parte desse processo desfazer concepções comuns do que é essa cena, do que são as dimensões usuais, os limites normais do palco. Todas as cenas nas imagens a seguir são de espetáculos em que Colker ampliou diferentes dimensões das noções tradicionais de corpo, cenário e palco na dança:
Nos três primeiros filmes da saga John Wick, é possível enxergar um interesse crescente em fazer o mesmo. Aqui, entretanto, seguindo a contramão de outras franquias de ação e tentando manter os pés nos efeitos práticos, com o menor uso possível de edições posteriores com computação gráfica. Afinal, para quebrar limites e gerar um efeito “uau!” pode-se até jogar carros super potentes de um avião para iniciar uma perseguição. É deliciosamente de divertido, mas talvez não tão impactante assim ao reassistir.
Ainda que o primeiro filme não seja tão expressivo nesse sentido, é possível dizer que nas duas grandes ações de luta do filme (quando Wick se veste de terno completo para receber vilões em casa e na visita à boate), existe um nível regular de coreografias que remetem ao cinema asiático, especialmente de Hong Kong, como John Woo e Johnnie To.
É a partir do segundo filme, no entanto, que este todo ganha um corpo diferente, assumindo o desejo de construir uma plástica específica ao filmar estas coreografias. Em uma das mais importantes sequências, John Wick luta contra seus inimigos em uma exposição modernista de espelhos. Fazendo referência ao começo deste mesmo filme, as cenas em um labirinto de reflexos reforçam o sentido de “condenação” pelas escolhas feitas em seu passado. Ressoando no cinema de Johnnie To (especificamente no final de Mad Detective), a pancadaria espelhada atinge seu ápice em um momento em que já não sabemos mais se vemos o reflexo ou a imagem real. Em certo momento, John Wick aponta para uma direção com sua arma e acerta um oponente usando o próprio jogo de espelhos. No controle do seu corpo, do seu espaço e de suas armas, Wick segue a dança.
Em Parabellum, então, quando a dança é assunto do roteiro, o tema dos reflexos se repete. John Wick está “excommunicado” de fazer qualquer negócio com a Cúpula e, claro, precisa ser morto. Agora, quando precisa enfrentar dois “fãs” ao mesmo tempo, está em uma sala secreta do Hotel Continental cheia de armaduras de samurais com vidros por todos os lados. Como que ironizando essa sociedade secreta de assassinos que faz tudo sob os olhos do mundo, a sala cheia de vidros transparentes traz a possibilidade de as lutas ganharem uma camada única de “transparência”. Ao fim, esse efeito translúcido, se revela a soma de um artifício estético brilhante, mas um recurso de um vilão com habilidades fantasmagóricas.
A cada filme, os planos se tornaram mais longos (o que exige mais da habilidade dos coreógrafos, atores e dublês), assim como as cenas de luta em si. Mas nada superaria os desafios e conquistas no quarto e último filme da franquia.
Baba Yaga, o desfecho da saga John Wick, brilha com ainda mais intensidade diante de tudo que foi construído na saga até aqui. Cada sequência de luta de conflitos físicos (seja com carros, armas ou punhos e pés) é um pequeno espetáculo de dança ultraviolenta. Cada uma delas é mais uma tentativa de John Wick de sobreviver, mesmo sabendo que este é um fato impossível. E em cada uma delas, ainda que não sobreviva, ele lutará.
Para além de destacar o domínio completo de cena ao filmar a sequência do arco do triunfo, vale ressaltar aqueles que talvez sejam os dois elementos mais importantes da tese que este texto tenta desenvolver. Apesar da destreza considerável de Keanu Reeves, ele não é exatamente o mais visualmente “artístico” em seus movimentos luta entre os atores de ação contemporâneos. Talvez por limitações dele mesmo, talvez por escolhas de característica do personagem, John Wick nunca faz movimentos extremamente ágeis em saltos impossíveis para chutar ou algo do tipo. Muito mais da escola do aikido e do jiu-jitsu, Wick parece sempre dominar seus adversários com menos acrobacias e mais dominância por imobilização e contorções.
Daí a satisfação que é ver em cena, com Keanu Reeves, os brilhantes Scott Adkins e Donnie Yen. Conhecido pela trilogia “Boyka”, Adkins é um britânico que, em estilo, sucede na cultura pop diretamente as habilidades de Jean-Claude Van Dame, com quem já pode contracenar. Em John Wick 4, Adkins está quase irreconhecível, como o alemão gigante Killa. Usando uma roupa que lhe dobra o peso do corpo em aparência e dentes de metal (em referência ao seu papel em Implacável?), Adkins surpreende como uma espécie de personagem de videogame (alusão que renderia outro texto sobre a saga). Sua luta com Reeves entra no topo de um hall difícil de superar entre as lutas mais emblemáticas da série de filmes.
E como se alguém dissesse “mas se a gente colocar Donnie Yen em cena como um cara normal vai ser fácil demais para ele”, resolvem lhe dar o papel de Cain, um assassino do calibre de Wick, mas atenção, cego. Yen, conhecido como o Ip Man, ou O Grande Mestre, interpretou na tetralogia de filmes o famoso mestre de Bruce Lee. Com pelo menos quatro grandes sequências de lutas em Baba Yaga, o ator chinês domina cada uma de suas cenas, superando até mesmo o brilho do próprio Reeves em sua habilidade coreográfica: nada parece truncado, cada movimento é fluído como sua filmografia sempre demonstrou.
Acontece que a série decide ir para um caminho improvável na relação entre os dois (Cain e Wick) e nos traz nada menos que uma das mais memoráveis cenas de ação de todos os tempos, em uma escadaria, gerando um efeito de múltiplas sensações para o espectador. Às vezes estamos rindo, às vezes tratando tudo como inverossímil, às vezes como a coisa mais coerente possível para tal história. Yen e Reeves em cena são, diante do arco final dessa narrativa, a melhor coreografia possível para esse espetáculo de violência.
Vivendo uma espécie de tragédia grega, John Wick a cada filme se supera mais. Os capangas e vilões nunca acabam, entretanto. Com Cain ele sobe as escadas até a catedral de Sacré-Coeur, mata dezenas, apanha, cai, sobe tudo de novo e isso se repete. Meio Sísifo, John empurra uma esfera invisível para chegar até o topo e descobrir se seguirá condenado. Nós seguimos admirando a destreza dessa dança incansável.
Fim do texto do Ricardo.
Expediente
Eu não curto muito filmes de ação, mas gostei de enxergar o John Wick pela perspectiva do Ricardo. Talvez esse seja o poder da leitura: nos mostrar como os outros enxergam o mundo. É uma chance de conhecer novos universos :)
No último sábado eu tive a chance de conhecer mais leitores pela videochamada do Planejamento Criativo 2024. Foi bem bacana! Eu adorei a troca do pessoal. Para quem não teve a chance de estar por lá, a última edição da newsletter desse mês vai ser um apanhado do que eu mostrei sobre como começar um planejamento anual (mais os modelos do Notion para organizar as ideias para 2024).
Esse mês está especialmente carregado emocionalmente por aqui, mas confesso que estou com saudade de postar textos expondo as caraminholas da minha cabeça para trocar ideia com vocês. Estou com saudades! Mas seguimos com o Novas Órbitas até 7 de dezembro.
A exceção será a edição da newsletter em 30 de novembro, só para apoiadores. Confesso que o ensaio vai ser sobre planejamento anual - eu sou uma nerd de organização pessoal, exatamente porque sou uma pessoa extremamente caótica -, mas também devo dar uma palhinha sobre coisas da vida, sentimentos sobre as guerras que estão rolando tão perto de mim e aquela problematização de sempre.
Nos vemos às quintas, como sempre.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Adorei o texto. E vou dar uma chance aos filmes, nunca assisti nenhum.
Vanessa, mais uma vez: valeu demais pela divulgação do texto e da minha newsletter por aqui. Especial demais!