Oi, gente
Em períodos de crise existencial, eu tenho o hábito horrível e maravilhoso de travar e sumir. Na crise da semana passada, fui resgatada por um livro. E então me perguntei: quantas vezes a arte me salvou do fundinho desse poço?
Inúmeras.
Continuando a série de textos Novas Órbitas, em que trago para cá as palavras de outras pessoas que escrevem, hoje é dia de ler o jornalista Nathan Fernandes. Ele escreve a newsletter PunkYoga, que recentemente foi migrada para a plataforma Substack. E esse texto tem tudo a ver com o livro que me salvou da última fossa.
Fiquem aí com as órbitas do Nathan.
PunkYoga: Broca no crânio (ou como quebrar o tempo)
Por Nathan Fernandes (originalmente publicado aqui)
A cantora Dua Lipa tem um podcast com um nome que é ótimo. Em tradução livre, seria algo como Dua Lipa ao seu dispor ("Dualipa at your service"). Esses dias tava ouvindo a entrevista que ela fez com a Amanda Fielding, e elas caíram no papo de trepanação.
Não é isso que você tá pensando.
A Amanda Fielding é uma condessa inglesa que se tornou um dos principais nomes da ciência psicodélica. A primeira vez que ouvi falar dela foi nessa reportagem da Trip, em 2010, quando eu era um singelo estudante de jornalismo que economizava no lanche pra comprar esses artefatos chamados revistas. Nessa matéria, ela explica que trepanação é a abertura de um pequeno buraco no crânio, com o objetivo de reduzir a pressão dentro da cabeça e facilitar a circulação de sangue no cérebro.
Sim, um furo no crânio. Com uma broca elétrica.
Quando li isso pela primeira vez devo ter feito essa cara que você tá fazendo agora de "mas que porra...".
Acontece que a trepanação é uma técnica antiga. Ela já foi usada por culturas do planeta inteiro: desde os egípcios e os indígenas do Peru até os chineses e europeus do século 16. Existem vestígios de caveiras trepanadas desde o período neolítico. A questão é que até hoje não se sabe muito bem por que as pessoas faziam isso. Nesse texto do The MIT Press Reader, eles falam que o procedimento era usado para tratar desde epilepsia até "males da mente", como a melancolia e a loucura.
Na entrevista com a Dua Lipa, a Amanda Fielding deu uma explicação interessante, que não tava naquele texto que eu li em 2010. Ela lembrou que, quando a gente nasce, o crânio é mais mole, e, conforme crescemos, ele vai endurecendo. Todo mundo que já pegou um bebê no colo sabe disso. Mas uma teoria diz que a pressão que vai se formando no cérebro é responsável por dizimar a nossa empolgação e a nossa energia vital ao longo dos anos. A trepanação seria então uma forma de devolver ao cérebro o impulso de vida que a gente tem na infância.
A Amanda soube disso e quis testar. Enfim, uma mulher curiosa...
Janelas de tempo
Achei engraçado porque, semanas antes, havia sido publicado um estudo interessante que trouxe coisas novas pro nosso entendimento sobre as substâncias psicodélicas. Eu escrevi sobre ele aqui no Ciência Psicodélica, o site que edito com amigos pesquisadores.
Basicamente, o estudo diz que os psicodélicos também abrem a nossa cabeça para retomarmos padrões da infância. Mas não metendo uma broca elétrica na moleira. É de uma forma mais metafórica.
Existe um conceito que se chama "período crítico", são fases de desenvolvimento, ou, como os cientistas mais poéticos dizem, são "janelas de tempo".
São os períodos nos quais a gente tá mais apto a aprender alguma coisa, a andar, a comer de garfo e faca, a falar um idioma, etc... São milhares. A maioria dessas janelas se abre na infância. Não quer dizer que não dê pra aprender nada depois que elas se fecham, mas esses períodos facilitam a aprendizagem. Talvez isso explique por que, no passado, eu conseguia usar código html pra programar meus blogs, e hoje eu fico zonzo tentando mexer no TikTok.
Enfim, o que a pesquisa mostrou é que substâncias como LSD, ayahuasca e cogumelos são capazes de reabrir essas janelas de tempo. Como se fizessem o nosso cérebro voltar a ter a mesma flexibilidade do passado. Ou seja, hábitos e comportamentos que a pessoa tem impregnados hoje poderiam ser reprogramados. Isso pode ser uma maravilha não só pra pessoas com dependência química ou depressão, por exemplo, mas também no tratamento de questões como Alzheimer, derrame e até cegueira.
Nessa matéria espetacular da Wired, a psiquiatra Rachel Yehuda disse que é comum as pessoas relacionarem a terapia psicodélica com um “botão de reset” na mente, mas, até esse estudo ser publicado, ninguém conseguia explicar “como algo de duração tão curta [a experiência psicodélica] pode ter efeitos duradouros e transformadores que vão muito além do período de tempo em que a substância está lá”.
O mais fascinante pra mim é que, mesmo sem um eletroencefalograma, muitos grupos espiritualistas que usam ayahuasca falam justamente da recuperação da nossa "criança interior" como uma forma de cura.
Sem vergonha, nem limite
Em Acordo, Carlo!, da Netflix, um garotinho chamado Carlo (não Carlos!) acorda de um sono mágico, depois de 22 anos, e encontra todos os seus amigos já crescidos, afogados pelas obrigações e desfortúnios da vida. O lugar encantado onde ele vivia, a Terra da Diversão Sem Motivo, agora é comandada por um tirano egocêntrico que roubou a memória das pessoas e proibiu todo mundo de ser feliz.
É um desenho animado, que tem uma pegada psicodélica alucicrazy. Entre as minhas cenas preferidas, estão a morte da baleia Edilene ao som de "Tudo Passará" do Nelson Ned, e o samba romântico cantado pelo coração da montanha Solange. O desenho é uma grande fanfarra, mas o roteiro nonsense a as cores berrantes escondem a terrível constatação de que a vida, de fato, vai apagando o nosso brilho.
Por isso, não julgo a Amanda Fielding por querer recuperar a empolgação da infância. Meteria uma broca elétrica na testa? Não. Mas também não a julgo.
Como escreveu minha amiga Cláudia Fusco, na ótima newsletter dela:
“Carlo é a resistência do passado brincalhão, da infância livre de preocupações, invadindo o presente cinzento também como uma anomalia — mas que, ao mesmo tempo, tem a vida toda pela frente. Carlo não tem lugar nesse mundo careta, então o invade para, aos poucos, colori-lo de novo.”
O Carlo não tem medo, nem vergonha de ninguém. Ele só quer se divertir, e não tem preocupações. Exatamente como a gente é quando criança.
Criança viada artística
Eu era uma criança viada artística. Adoraaava organizar espetáculos com minhas primas e meu irmão — mesmo que eles não quisessem, já que eu era o mais velho e mandava. A gente fazia musicais e reproduzia cenas de novela. Um dos meus grandes momentos foi fazendo o personagem de José Mayer em Mulheres Apaixonadas, o Pedro.
O auge foi quando minhas tias, que tinham uma escolhinha infantil, pediram pra eu preparar uma peça de teatro pra Páscoa, mas que também falasse do "descobrimento" do Brasil. Não sei como fiz isso, mas fiz. E fui aclamado pelo público de 0 a 5 anos.
Quando descobri que Fuga das Galinhas tinha sido feito com massinha, um troço que eu podia comprar no bazar indo pra escola, fiquei doido, e cismei que queria fazer um filme em stop motion — mesmo sem roteiro e sem a mínima ideia de como fazer isso. Mas não existia câmera caseira no Capão Redondo em 2000, e isso acabou atrapalhando um pouco a produção do filme.
Uma vez, com a câmera de um primo, conseguimos gravar um filme que chamava O Dragão Dourado de Budapeste. Aproveitei a ocasião pra propor uma supreprodução com contraplanos, planos sequências, planos aéreos, perseguição de carrinho de plástico e vilã misteriosa dublada em tempo real. O roteiro foi sendo feito na hora mesmo, foda-se, e a gravação ainda deve existir no fundo de algum armário.
Eu era empolgado demais com a câmera e vivia pensando nas maravilhas que eu faria se tivesse uma em casa.
Hoje, eu tenho. E não faço nada.
As coisas que dá pra fazer com o celular hoje teriam me ocupado dos 6 aos 14 anos seguramente — depois eu descobri o emo, o hard-core & o punk e virei um terrorista poético. Por isso, um dia, sozinho com meus pensamentos, quando tava lavando louça, me questionei: por que caralhos eu não faço uns videozinhos pra brincar?
Ainda não sei aonde esse pensamento vai me levar, mas a questão aqui é...
Ao recuperar um desejo do passado, fiquei pensando que, talvez, a infância seja um bom lugar pra visitar quando a gente tá meio perdido.
Não acho que ninguém precise voltar a ser criança. Não pegaria bem uma pessoa de 34 anos, como eu, proprietário de newsletter, andando só de Pumpers na rua. Aliás, se tem uma coisa que eu ODEIO-NÃO-SUPORTO na minha lista curtíssima de coisas que merecem esse sentimento é gente adulta falando com voz de criança. Se você for adulto, não faça vozinha de criança na minha frente. Ah, Nathan, mas você tem que ver que... Não. Faça. Vozinha. De. Criança. Na. Minha. Frente.
Aliás, a infância também pode ser um momento de muita vulnerabilidade, medo e insegurança.
É nessas horas que eu lembro do meu amigo Gust e do símbolo do torus. Esse símbolo, que parece uma rosquinha com a cobertura derretendo para o próprio centro, mostra que a gente tá sempre voltando pro mesmo lugar, mas não pelo mesmo caminho. Quando a gente chega de novo no ponto em partimos, já estamos transformados.
É a mesma ideia da Jornada do Herói, do Campbell, um conceito que tá presente em praticamente todas as histórias que a gente conhece tipo Harry Potter, Senhor dos Anéis, etc, você sabe, a pessoa recebe o chamada à aventura, ela parte (mesmo sem querer, às vezes) e depois de muitos desafios e provações e lutas corporais com inimigos maiores e fisicamente mais fortes do que ela, ela retorna ao lar. Quando retorna, porém, já não é mais a mesma que partiu.
Acho engraçado quando ouço pessoas mais velhas dizendo que gostariam de ter a cabeça que tem hoje mas com o corpo da juventude. Fico pensando que seria uma aberração ter uma criança especializada em direitos humanos e políticas de drogas, por exemplo. Ou seria legal, vai... Ela apareceria no programa da Eliana, pelo menos.
Mas não é possível "ter a cabeça de hoje com o corpo da juventude". O Elon Musk ainda não conseguiu viabilizar essa demanda. O que é possível, no entanto, é ter o corpo de hoje com a cabeça da juventude. Um corpo com experiências e conhecimentos acumulados durante anos, mas que, por dentro, mantém a curiosidade, a empolgação e a abertura para se surpreender com as coisas ainda inéditas da vida.
Cada vez mais, me parece que vence esse jogo de "ser uma alma encarnada em um plano material" quem entende que a infância não é um período de tempo finito na vida de uma pessoa, mas um estado mental que a gente cultiva junto com a experiência acumulada. Isso é reabrir os períodos críticos no cérebro, diriam os cientistas psicodélicos. Isso é quebrar o tempo.
Fim do texto do Nathan.
Expediente
Esse texto do Nathan me fez pensar em tantas coisas. Faz tempo que eu acredito que o maior efeito das drogas não está no barato que elas podem nos dar no momento do consumo. Mas na pessoa que a gente se torna depois da viagem. Os resquícios. Tudo aquilo que foi transformado dentro e fora da gente.
Lembrete
A caixinha de perguntas de leitores continua aberta :) Já estou elaborando pautas com base nas mensagens que vocês estão enviando. Continuem!
Semana que vem, o texto é só para apoiadores e vai vir com uma palhinha das coisas que pensei enquanto lia o livro que me salvou da crise existencial semana passada.
E no dia 7 de dezembro, teremos o último texto da série Novas Órbitas. Depois disso, voltamos ao expediente normal.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
como não tinha assinado a newsletter do nathan antes? gracias, querida!
Ando chatão pra ler newsletters — acho que cheguei naquele lugar de "assinei demais" — mas devorei esse texto. QUE TEXTÃO. Não só assinei como já peguei um pacote de Psylocibe cubensis que tenho aqui.............