A famosa naturalização da nudez entre os nórdicos é muito mal compreendida. Entendo isso só agora, depois de 7 anos vivendo entre eles. Não é que ficar pelado seja uma coisa comum aqui, mas é parte de alguns rituais. Cumpre papéis importantes na vida em sociedade.
Uma questão de sal e suor
No meu primeiro dia de trabalho em uma certa empresa em Estocolmo, rolou uma festinha em um restaurante próximo ao escritório, pois alguns times da filial de Helsinki, da Finlândia, estavam nos visitando. Em uma certa mesa, estava rolando uma discussão curiosa entre suecos e finlandeses. Os primeiros queriam instituir uma regra nova para a sauna na festa de fim de ano da empresa; que todos os presentes usassem pelo menos uma sunga ou a parte de baixo de um bíquini. Os finlandeses estavam inconformados, na sauna temos que estar completamente pelados, oras. Os suecos discordavam deles porque estavam chegando muitos imigrantes no escritório, pessoas que não se sentiam à vontade em ficar completamente nuas na frente dos colegas de trabalho. Eu perguntei se não seria o caso de informar aos imigrantes que eles poderiam usar roupas de banho na sauna, ainda que os nórdicos estivessem nus.
Foi ali que aprendi duas coisas. A primeira é que a sauna faz parte da cultura local, pois é onde trocam-se confidências, revelam-se verdades e as conversas são mais verdadeiras. O calor intenso libera suor do corpo e relaxa a mente, assim como solta a fala, derretendo barreiras do mundo externo, colocando todos em uma condição de igualdade. A segunda lição aprendida foi: a nudez na sauna precisa ser compartilhada por todos os presentes, de outro modo, não há igualdade. Para os suecos ali na discussão, quando um colega de trabalho estrangeiro deixava de participar desse momento, a pessoa estava retirando-se de um instante fundamental de convivência com seus pares. Para os finlandeses, estar completamente nu era essencial para atingir esse estado de intimidade absoluta com os colegas. Para eles, não havia modo melhor de compartilhar uns com os outros exatamente o que se passa na cabeça de cada um.
Não se chegou a nenhuma resposta. A festa de fim de ano foi movida para um lugar sem sauna. Neutro.
Mas tive meus momentos nos meses seguintes. Foi uma fase interessante de adaptação.
Quando comecei a usar a sauna da academia de ginástica, fiz amizade com um grupo de russas. Elas me emprestavam sal grosso para esfregar no corpo e contavam banalidades do dia a dia, reclamavam dos maridos e falavam dos sonhos de viagens para países tropicais. Não lembro do nome de nenhuma delas, mas lembro dos sonhos. Das aspirações. Dos seus corpos tenho uma vaga lembrança, nada me chamou atenção suficiente para reter na memória. Acho que é assim para todo mundo na sauna.
O dia que vi minha chefe nua pela primeira vez foi curioso, ainda sim entrei na dança mais rápido do que esperava. Aprendi a não me dar tanta importância assim. Claro, é muito mais fácil ficar nu quando todo mundo está nu também. E hoje em dia sou mais do time dos finlandeses.
Mas nunca encontrei resposta para os colegas muçulmanos, por exemplo, que por uma questão religiosa-cultural simplesmente não podem mesmo desfrutar desse aspecto da convivência. Então, hoje também entendo aquela preocupação dos suecos. E compartilho da frustração sobre um problema que simplesmente não tem solução.
Um mergulho na intimidade
Não gosto quando falam que estar sem roupa “é natural' para as pessoas daqui. Porque parte do pressuposto de que é algo banal. Como se as pessoas não tivessem consciência de que estão nuas. Pois todo mundo sabe que está pelado, e se estar pelado fosse natural ninguém ia andar de roupa no resto do tempo. Mas há, sim, lugares e situações em que estar pelado faz parte da paisagem.
Outro espaço onde mora a nudez é a natureza. Esse sim é um lugar pouco claro de entendimento, mas que estou aprendendo aos pouquinhos através dos anos. O tempo sempre é o melhor amigo da compreensão. Despir-se para entrar na água no verão, dado a oportunidade, é um ato de contato com o mundo. Diferente da sauna, que requer o desprendimento da nudez dentro de um espaço contido e de intensa intimidade, na natureza nada é obrigatório. As coisas simplesmente são aceitas como são. Com nudez ou sem nudez, a natureza aceita tudo.
Creio que ficar pelado em público nesses ambientes ao ar livre é como esfregar o corpo no universo. Tira-se a última barreira entre civilização e natureza, mas a civilização nunca nos abandona. A etiqueta do respeito fica. E é como se fossemos seres humanos de verdade por um momento: pensamos, nunca deixamos de pensar, mas também entramos no mundo como os bichos entram, em contato direto. Pele e ar, pele e água, pele e terra, pele e olhares.
O olhar dos outros, o nosso corpo
Penso que nós somos educados para dar importância demais a visão dos outros sobre o nosso corpo. Com o passar do tempo, essa visão incorpora-se aos nossos olhos também.
Olhar-se no espelho não é olhar para si, mas perceber o que os outros vêem ali. Como se uma vigilância silenciosa invadisse nossa privacidade. Para mim, é como se não fosse possível estar sozinha mesmo quando sou o único ser humano dentro de um quarto fechado, olhando-me no espelho.
Ao longo desses 7 anos aqui, vou sentindo esse olhar vigilante desaparecer. Bem devagarinho. O exercício de ver outros corpos, tão despretensiosamente, me faz ter uma dimensão mais gentil de mim mesma.
No fim, parece que o corpo dos outros torna o meu corpo mais meu.
Passando o chapéu
Esse foi um texto típico de quinta, um ensaio curto, meio crônica. Aos domingos costumo publicar ensaios longos, textos exigentes que precisam de mais investigação. Algumas edições levam meses de pesquisa até eu sentar para escrever um texto final - que pode demorar dias para ser produzido. Isso é um puta trabalho do cão. Desculpa o meu francês.
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Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Eu demorei bastante para entender sobre a cultura da sauna x nudez nos países escandinavos que você explicou de maneira extraordinária. Eu sempre ia com meu biquini e nem tchum. O problema é que nunca houve essa conversa e nem meu marido me chamou de cantinho pra dizer o quanto eu estava sendo deselegante. Trouxe esse mesmo conceito da vulnerabilidade que você cita quando estamos nus para a cultura da nudez aqui nos lagos. E ele se encaixou perfeitamente.
Eu não tinha a menor ideia de quão culturalmente marcante é a sauna nos países nórdicos! Aprendi uma coisa hoje.