O corpo é selvageria na civilização
Uma quase resenha do livro Escute as feras, de Natassja Martin
Humanos têm o estranho hábito de olhar uns para os outros como quem procura as falhas naquele jogo “encontre os 7 erros”. Compara-se uma pessoa com a outra, sem pensar muito no que elas têm em comum — dois olhos, um nariz e uma boca? — e sente-se um estranhamento dolorido quando o observador percebe em si mesmo mais diferenças do que semelhanças. Tatuagens foram meu modo, na juventude, de aceitar essa diferença como uma condição imutável; os desenhos que carrego pelo corpo nunca me abandonarão e toda vez que olho para mim mesma, no sentido mais literal da expressão, eles estão lá. A forma do corpo muda com a idade, o rosto continua a ser esculpido pelos anos (o tempo é um artesão) e a mente reinventa-se com novas histórias, expandindo-se em novas ideias. As tatuagens são âncoras. No meio da multidão urbana, onde nos dissolvemos na massa difusa de corpos, o reflexo no vidro da porta do metrô revela essa identidade.
O corpo é uma obra de arte. O corpo é um museu.
No livro Escute as feras, a francesa Natassja Martin sobrevive a um ataque de urso. É uma história real, em que a antropóloga elabora o que ocorreu com as ferramentas que a profissão lhe forneceu — “ele morde meu rosto depois a cabeça sinto meus ossos estalando penso comigo mesma estou morrendo mas eu não morro, estou plenamente consciente. Ele me solta e pega minha perna” —; o diário de campo, a escrita, a compreensão do que significa o ataque do urso em diferentes culturas. As pessoas descrevem esse livro como um tratado sobre nossas diferenças com a natureza e o selvagem, mas na minha leitura, entendo que o livro é exatamente sobre a semelhança que encontramos no selvagem. No escuro, no desconhecido. Ele permanece mesmo na civilização. Tal como é relatado no livro: após o resgate, Natassja entra em uma via crucis hospitalar, começando em uma unidade de saúde precária mas super eficiente nos confins das montanhas e vulcões russos, até o hospital mais moderno de Paris, que insiste em refazer o trabalho dos russos. Ela conta: “Aquele talvez fosse o momento em que teria sido necessário dizer que eu, pessoalmente, confiava nos russos. [..] É assim que, tranquilamente, mas de forma implacável, meu maxilar se tornou o palco de uma guerra fria hospitalar franco-russa.”
Para mim, o mais surpreendente nesse relato não foi o ataque do urso, tampouco a guerra entre os hospitais (que envolve uma rixa não apenas internacional, mas local, entre hospitais de Paris e os do interior), mas o retorno de Natassja ao lugar inóspito, numa ilha vulcânica escondida no sudeste da Rússia, onde o ataque aconteceu. Apenas naquele lugar e com os caçadores que lá moram, sem energia elétrica ou mesmo telefone fixo, ela encontra espaço para conhecer a pessoa na qual o urso a transformou. Com o rosto marcado por cicatrizes inchadas, avermelhadas, assim que ela tem autonomia suficiente para comer, ela vai à embaixada da Rússia, emite um novo visto e parte.
O corpo é um lugar. O corpo não é lugar para uma guerra, mas ainda sim —
Distante da ideia de tatuagens, cicatrizes desenham o abstrato. O acaso, o selvagem, tudo o que nos foge o controle. Se a tatuagem é uma pintura a óleo emoldurada no museu do corpo, a cicatriz é a fotografia de uma tragédia, um rompimento na pele, um marco. Para mim, ambas importam de uma maneira meio desengonçada. Como se fossem marcações de períodos históricos da vida. Mudanças por dentro e por fora. Como as mulheres fazem cortes de cabelo para comunicar-se com o mundo — é engraçado a ideia de que o corte de cabelo é uma domesticação do selvagem, uma tentativa de controlar o crescimento de um tecido que brota do topo da cabeça e, ainda sim, as mulheres conseguem subverter a ideia da domesticação em malcriação. Corta-se o cabelo para demarcar território, para mostrar que a fera está ali, à espreita. Tesouras, objetos cortantes. Seria a arte uma expressão do selvagem? Quando eu tinha doze anos, um colega na escola me perseguia, testava meus limites. Um dia eu o ameacei: se repetisse mais uma única vez a atitude que me desagradava, eu cortaria seus dedos à tesoura. Ele esticou o dedo indicador na minha frente e repetiu as palavras que me machucavam, como um desafio. Eu não hesitei um segundo sequer; encaixei a tesoura na carne e apertei, só parei quando senti a dureza do osso. Ele berrou, o sangue brotou. Penso muito nas minhas cicatrizes, mas nunca penso naquela que eu fiz no garoto. É como se não fosse meu problema. Descarreguei, ficou para trás.
“Entendi uma coisa: o mundo desmorona em todos os lugares, apesar das aparências. O que acontece em Tváian é que se vive conscientemente em suas ruínas.”
Trecho de Escute as feras.
Ainda no livro de Natassja, me toca muito a convivência com os caçadores even. Ela fala deles não como um grupo de pessoas ancoradas em um modo de vida antigo, mas como gente que atualiza um modo de vida que foi abandonado pela maioria de nós. A gente chama nossas cidades de civilização como se os even não fossem civilização também. Tenho problemas de entender, lá nos escritos da antropologia, o que é mesmo uma civilização. É como o estado mais atualizado de um povo, seu momento mais recente na história. A gente tende a relacionar modernidade com tecnologia, e tecnologia com avançado, avançado com complexo, complexo com desenvolvido. Mas a tesoura sem ponta com a qual cortei meu colega de classe é tecnologia. As peles de urso com as quais os even dormem na cabana no meio do nada, no inverno siberiano, também são tecnologia.
O corpo não é tecnologia. Mas a tecnologia serve ao corpo.
“Aquilo que está no fundo do corpo do outro será para sempre inacessível a você.”
Trecho de Escute as feras.
Bzzz. Bzzz. O conhecido barulho da máquina do tatuador rasgou minha pele na última vez para dar vida a uma onça. Quando cheguei no estúdio, pedi que tatuasse a bendita na parte de trás do braço, que era para fazer conjunto com outro bichão que carrego nas costas. Quando fiz esse bichão, minha primeira tatuagem (assim que fiz 18 anos), as pessoas chocavam-se com o tamanho do desenho. E muita gente brincava que eu tinha desenhado um dragão gigante nas costas para me proteger. Meu guarda-costas. Não fui eu que pensei nisso, mas incorporei essa ideia. A onça faria dupla. Mas o tatuador, o real artista por trás da pintura, sugeriu que a onça ficasse na parte da frente e eu aceitei. Foi uma decisão acertada. Toda vez que olho para a mão que escreve no papel ou no teclado do computador, a onça raivosa me olha de volta.
E eu lembro que escrevo com as feras de dentro também.
Orbitando por aí
Para quem quer começar uma newsletter, ou está patinando no próprio projeto, saiu um post bacana sobre como criar comunidade usando a escrita. Tem depoimento meu e de outras colegas aqui do mundo das newsletters. Valeu por fazer esse apanhado, Ariela!
Também fiz uma aparição inesperada nas indicações da querida Alê Garatoni:
O post da semana passada ainda está bombando e eu ainda estou respondendo os comentários. O assunto “sumir do instagram é um luxo” está rendendo.
Te desejo um dia gostosinho, aonde quer que você esteja. Obrigada por estar caminhando aqui comigo.💗
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Comovida, que texto lindo.
Que bonito, Vanessa! Eu gostei muito das suas impressões, esse livro me atravessou de um jeito tal que tive dificuldade de processar. Escrevi sobre ele também! Se quiser dar uma olhada tá aqui: https://tremdasonze.substack.com/p/escute-as-feras