É inegável o cansaço, ou fadiga, que todo mundo vem sentindo das redes sociais. Mas também é inegável que a cada par de anos a gente muda o jeito como consome conteúdo. Isso também molda a nossa experiência de vivência, já que o mundo digital está intimamente entrelaçado com todos os setores da nossa vida (vide o onipresente aplicativo do banco nos celulares, só para início de conversa).
Com a popularidade crescente do tiktok, outras plataformas vão incorporando o formato dele, inserindo esse molde mais e mais na nossa rotina. Vídeos curtos, cortes e uma sensação de fila infinita. Na internet gringa, o pessoal do youtube vem chamando isso de “a maldição do swipe”. Enquanto no próprio youtube, a tendência é que um usuário clique no botão “subscribe” depois de assistir a pelo menos sete vídeos de um mesmo produtor, no tiktok a tendência é que o usuário passe a seguir uma conta nova depois de apenas 1 vídeo. E isso não é garantia de que o conteúdo da pessoa vai passar de novo pela nossa timeline (mesmo na aba For You).
Isso levanta o novo fenômeno dos followers: no tiktok, ter uma base grande não significa relevância. Não dá tempo dos seguidores criarem um relacionamento emocional com o influencer. Quando o produtor vai pagar as contas com conteúdo pago, ele não gera vendas porque a chance é de que o vídeo vai estar sendo exibido para todo mundo, mas não exatamente para quem está seguindo a conta. Para estabelecer uma relação sólida com a audiência, você precisa estar se relacionando com ela. E todo mundo sabe que o público precisa confiar no influencer para consumir os produtos ou serviços que ele recomenda. O estabelecimento da confiança se constrói aos poucos, formando o que chamamos de relação parassocial.
“Uma das principais características da nova massa de rádio, televisão e filmes é que elas dão a ilusão de um relacionamento cara a cara com o artista. [..] As pessoas mais distantes e famosas são vistas como se pertencessem ao círculo mais íntimo de amigos de alguém [..]. Nós propomos chamar esse aparente relacionamento cara a cara entre espectador e artista de relacionamento parassocial.”
- Horton, D., & Richard Wohl, R. (1956). Mass Communication and Para-Social Interaction. Psychiatry, 19(3), 215–229. doi:10.1080/00332747.1956.1102 (tradução minha)
O relacionamento parassocial está aí desde a época que nosso único entretenimento de grandes massas era o rádio. Mas se antes havia um filtro gigante entre quem alcançava o status de artista — único modo de ser um influencer até quinze anos atrás — hoje, teoricamente, qualquer pessoa tem acesso aos meios que podem torná-la um influencer. Via de regra, qualquer um de nós pode se tornar uma webcelebridade com facilidade técnica (um simples smartphone cumpre isso muito bem), bastando o conteúdo agradar e alcançar o público.
A quarta parede
“A quarta parede é uma convenção dramática de atuação na qual uma parede imaginária invisível separa os atores do público. [...] A "quebra da quarta parede" é quando essa convenção de performance, tendo sido adotada de forma mais geral no drama, é violada. Isso pode ser feito por meio de uma referência direta ao público, à peça como uma peça ou à ficcionalidade dos personagens.”
- Trecho do artigo Quarta Parede, da Wikipédia brasileira.
Acho que o cansaço das redes vem do fato de que todo mundo está tentando criar uma relação parassocial com a gente. Nosso cérebro se confunde com o estímulo. Se antes a relação parassocial se desenvolvia ainda com uma certa distância (eu diria que até com um certo mistério) fruto do próprio meio, hoje essa barreira se desmanchou. É como se a famosa “quarta parede” não fosse sequer quebrada, pois ela não existe mais.
Tanto na tv quanto no cinema, ninguém está explicitamente batendo um papo conosco, mas claramente desempenhando uma performance. Na internet, a sensação é de que todo mundo está batendo um papo conosco (a performance ainda é ultra-consciente, porém baseada na tentativa de não parecer… uma performance). É desgastante.
Fleabag e Persuasão
Fleabag é uma série famosa por quebrar a quarta parede de um jeito que todo mundo gostou. Persuasão é a nova adaptação cinematográfica (da Netflix), de um livro homônimo de Jane Austen, que ficou famosa por quebrar a quarta parede e ninguém gostou. Superficialmente analisando, minha aposta é que Fleabag joga bem ao olhar para a câmera quando uma situação absurda ou emocionalmente envolvente acontece. Enquanto Anne Elliot, protagonista de Persuasão, mistura o olhar para câmera com a narração voice-over o tempo todo, deteriorando o recurso da intimidade com uma audiência jovem desgastada pelas redes sociais.
O fim da influência?
Quis falar de influência e falei de vídeos. Talvez seja porque a gente está mudando a percepção das coisas o tempo todo e hoje as plataformas priorizam a disseminação de conteúdo por vídeo muito mais do que imagem estática, som ou… texto 🤡. Então faz sentido pensar em influência pelo viés do formato vídeo. Não quer dizer que os outros formatos não tenham relevância, só quer dizer que agora o vídeo é priorizado por todas as grandes plataformas.
É claro que a influência não vai acabar, mas talvez seja o fim da influência pelas mecânicas que a gente operava até ontem. Como estabelecer a relação parassocial, a base da influência lucrativa, tendo apenas um vídeo curto como chance única de aparecer para o público? Será possível cativar as pessoas instantaneamente? Como? Fico curiosa com até onde essa lógica vai nos levar.
Para complementar a reflexão
O novo instagram das antigas, de Rodrigo Ghedin
Chegou a era das redes de recomendação, do Thiago Ney
O eu esgotado na internet, de Carolina Ruhman Sandler
Escute:
Satélite de recomendações
Newsletter
Punk Yoga, do Nathan Fernandes, chegou pela minha caixa de emails há poucos dias, mas já sou fã.
Festival online
RELAMPEIO é um festival internacional literário relâmpago que reúne convidades da fantasia, ficção científica e horror de vários países em debates ao vivo e gratuitos transmitidos pelo YouTube.
Vou estar nas pick-ups de tradução simultânea de inglês-português do festival. Acompanhe pelo youtube.
Podcast
Não Pod Tocar. “Um ensaio sobre figuração versus abstração nos modernismos brasileiros.”
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Amei a edição! E obrigada pela indicação do meu texto ❤️
Ainda quebro a quarta parede da minha vida fazendo cosplay do cumpadi washington toda vez que sento na janelinha do busu.
Que fique dito.