Texto de internet 💻
Oficina, lançamento de editorial novo e um mergulho no protagonismo de quem escreve
TEMPO DE LEITURA: 8 minutos.
Anos 90, na televisão passava uma cena de navio. Pessoas haviam contraído uma doença e morrido a bordo; os tripulantes vivos jogavam os cadáveres ao mar para que não contaminassem os sobreviventes. Eu, ainda criança, fiquei chocada e perguntei para minha mãe “mas eles podem jogar as pessoas assim no mar?” e minha mãe respondeu sem titubear “esses aí são apenas figurantes, fica tranquila, os principais vão continuar aparecendo”. Mais chocada ainda com a resposta, fiquei dias pensando por que existiam pessoas dispostas a morrer para interpretar um papel em uma peça de ficção. Sim, eu achava que os figurantes tinham morrido mesmo e a casualidade com que minha mãe explicou o fato me deixou perplexa. Isso é normal? Eu ainda não entendia muito bem as nuances do que era interpretar, ainda não distinguia personagem de ator, mesmo que estivesse muito acostumada a ir ao teatro. Acredito que o hiper-realismo das telas me confundia. No teatro, era possível entender o conceito de contar uma história para uma platéia, porque no fim do espetáculo os atores apareciam para agradecer. E o público retribuía com aplausos. Pela tela da televisão e do cinema, as coisas eram concebidas como verdade do início ao fim, em um universo lacrado em si. Acho que só comecei a entender a mecânica do audiovisual quando passei a reconhecer atores de filmes e novelas em outros trabalhos, como se eles pulassem entre os universos. A partir daí, o espetáculo televisivo transparece a ideia de que é um espetáculo, pois eu sei que há uma pessoa por trás do papel. O intérprete, então, é visível mesmo dentro da interpretação.
Invisibilidade e propriedade
No campo das letras, podemos dizer que a interpretação não é tanto de quem performa, mas de quem consome. Parece papo de doido, mas vou explicar. Um dos aspectos mais sedutores da literatura, para mim, é a invisibilidade de quem escreve. Gosto de ler os livros sem pensar no rosto de quem escreveu, sem saber se o corpo é gordo ou magro, se a idade é muito maior ou muito menor que a minha, se o gênero da pessoa é esse ou aquele. Assim é mais fácil me apropriar do texto. Na ficção isso me parece imprescindível e, surpreendentemente, na não-ficção também. Percebi isso com mais clareza quando li o Escrever sem escrever, do Leonardo Villa-Forte.
“A escrita é política porque, diferentemente do discurso oral, ela independe de quem a profere. Qualquer pessoa que possa vir a ler um texto tem o potencial de estabelecer uma redivisão do sensível. Se a reprodutibilidade dos textos permite que ganhem destinatários insuspeitos, ela permite também que esses textos ganhem destinos imprevistos. [..] Aí estaria exatamente a força do texto, na sua vasta possibilidade de encontrar leitores e permitir efeitos impossíveis de serem previstos”
Se no início eu escrevia apenas para mim, agora eu escrevo também para um outro. Essa é a diferença entre escrever e publicar; quem publica está em busca desse outro desconhecido. E a interpretação não cabe mais a mim, a escritora, para quem o texto não diz mais respeito. Mas a leitora que torna o texto propriedade dela.
Os “destinos imprevistos” que Leonardo fala no livro são as pérolas de interpretação que retornam de cada texto lançado. É a ressonância da palavra que saiu de dentro de mim e foi parar dentro de um outro alguém, um alguém que se apropria do meu discurso. Na internet vemos essa dinâmica com muito mais clareza, pois a reação pode ser observada dentro da mesma via por onde o conteúdo foi lido. O fenômeno não é tão fácil de acontecer em outros meios literários.
Exemplo: um livro pode arrancar emoções e reações diversas de pessoas diferentes, mas ele continua um objeto inalterado por essa reação. O livro não muda. Um leitor pode mandar uma carta ou uma mensagem nas redes sociais para quem escreveu o livro, se a pessoa ainda for viva, mas é necessário escolher esse outro meio de contato, completamente desconectado do livro em si. Aqui na newsletter o texto chega por e-mail e as pessoas respondem com um e-mail diretamente para mim. Alguns escolhem deixar o comentário no blog do substack e o aspecto público do comentário adiciona camadas de interpretação ao texto, camadas visíveis para quem quiser ver. Os “efeitos impossíveis de serem previstos” ficam diretamente conectados ao texto pelo mesmo meio em que ele existe.
A paixão pela invisibilidade de quem escreve virou um problema quando comecei a estudar, ainda na escola, sobre os movimentos literários e as pessoas que os compõem. Ler um livro já não era mais só ler um livro, era importante situá-lo no momento histórico, no país onde foi escrito, quem o escreveu e as prováveis motivações que os levaram a tal. Se antes o livro parecia mais próximo de uma obra de audiovisual, começando e terminando em seu próprio universo, agora o livro parece mais com o teatro. Depois que a cortina fecha, ela se abre novamente; e a pessoa escritora aparece para se dobrar em um agradecimento como quem diz “oi, eu estou aqui, eu criei esse universo”. Com a internet, essa dinâmica nunca esteve tão visível.
A internet se curva de volta ao texto
O TikTok agora tem possibilidade de postar texto, seguindo a tendência já absorvida pelo Meta, com o Threads. Os sistemas de newsletter estão incorporando um formato híbrido entre blog e e-mail que tem tudo a ver com o (nem tão) novo direcionamento. Esse lance de focar no texto pode parecer uma novidade das grandes plataformas, mas a internet foi criada para isso. Não sou eu que estou revelando agora; as pessoas que criaram a internet sempre deixaram claro que essa era a premissa.
Mas a internet não tem a mesma cara que tinha lá no início, quando tudo era mato digital. Se antes a gente criava e-mails e nomes de usuário que expressavam algum aspecto específico da nossa vida ou algo de que éramos fãs — meu primeiro e-mail foi criado em 1999 e era simplesmente o nome de uma flor que eu achava bonita, tulipa, e o segundo, de 2003, era o nome de um personagem de livro —, hoje é o nosso nome civil ou nossa persona profissional que encabeça e unifica todas as redes. Com essa mudança na dinâmica online e o retorno da internet ao texto, a invisibilidade de quem escreve é quase nula. Por conta do meio onde se escreve, as publicações nos forçam a conectar permanentemente o texto à identidade de quem o escreveu.
É a partir desse ponto que pensei, organizei e elaborei, ao longo de 9 meses (me sentindo grávida de gêmeos agora) duas novidades para essa newsletter. Duas novidades que unem dois fragmentos da minha pessoa: a programadora e a escritora.
Novidades!
🗺️ Expedições Criativas
Não é sobre escrita! (Mas, se quiser, pode.) A partir do mês que vem, lanço um editorial mensal mais robusto para explorar dificuldades e novos horizontes ligando internet e criatividade. Com uma premissa contemplativa e investigativa, as primeiras edições navegam pelo espaço do desconhecido e de tudo que nos trava na hora de criar e expôr nossas criações no mundo. A edição de lançamento vai ser sobre Motivação.
Para acessar as Expedições Criativas, basta assinar a versão paga da newsletter pelo Substack. Tem desconto especial para quem assinar o plano anual, mas se eu fosse você, eu esperaria para ler sobre a segunda novidade (no texto logo abaixo) antes de fazer essa assinatura.
🚀 Oficina: Revelando segredos
Blogs, newsletters e o combustível da escrita
Há cerca de um ano eu recebo pedidos para fazer um curso sobre escrita criativa e escrita de newsletter. Pode ter parecido que eu não estava afim, mas eu estava, desde sempre. Lá atrás eu tinha noção, sim, do que eu estava fazendo (não foi à toa que essa newsletter foi do zero aos mais de 3000 leitores em dois anos), mas precisava entender como passar o conhecimento adiante e de forma saudável.
Então, ao longo de 9 meses eu fiz pesquisa, reuni textos, exemplos, estudei casos, conversei com outros autores, observei o meio (até organizei um evento sobre newsletters pelo caminho) e elaborei um conteúdo sólido para passar adiante através de uma oficina online, ao vivo, dividida em dois módulos. Dias 2 e 3 de setembro, das 10 às 13h, horário de Brasília.
A oficina é desenhada para pessoas que querem soltar mais o texto, explorar o formato crônica e ensaio como meios de expressão e arte e também para profissionais buscando entender como a escrita pode ajudar a construir uma ponte de diálogo sólido com o mundo. O objetivo da oficina é oferecer técnicas e ferramentas para você continuar alçando voos cada vez mais próximos das estrelas - ou, melhor dizendo, do lugar mais próximo do seu desejo mais honesto sobre a escrita.
O primeiro módulo se chama Combustível e examina a relação da pessoa escritora com o texto, traz técnicas de escrita literária adaptadas para a internet e aborda jeitos práticos de encarar bloqueio criativo, frustração e auto-edição. O segundo módulo é o Saindo do chão, onde vamos entender como o texto chega até os leitores pela internet, como e quando usar newsletter e blog e quais as melhores maneiras de usar as ferramentas digitais para fazer nosso texto encontrar leitores que se identifiquem com ele.
Eu criei uma página com as informações completas e mais detalhadas sobre a oficina aqui.
Combo oficina + Expedições Criativas: para garantir a vaga na oficina, você precisa assinar o plano “Acesso a oficina” aqui no Substack. Ou seja, quem participar vai levar a versão de apoiador da newsletter junto. Isso significa acesso garantido, por um ano, aos textos do editorial exclusivo Expedições Criativas.
Espero te ver lá 🙂
Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
First! (Relembrando coisas antigas da internet hehehe)
Desde já ansioso pelo curso, e muito grato pela indicação!
Que novidade maravilhosa, Vanessa! Eu quero muito fazer o curso, fiquei animadíssima! Só preciso ter certeza sobre um possível evento que vai (ou não) acontecer nessa mesma data. Quase certo que serei sua aluna! Que lindo! ♥️