Os 5 leões da Babilônia & a morte de Anne Rice
Vem comigo numa viagem às profundezas da força, da humanidade e da imortalidade.
Os leões
Em 2016, entrei no famoso British Museum pela primeira vez. Para alguém que nunca sequer imaginou pisar em Londres algum dia na vida, entrar naquele museu foi uma mistura de casualidade com sacramento. Eu não queria tornar a experiência uma coisa especial e única enquanto tanta gente entrava e saía daquele lugar como se fosse apenas mais um prédio (eu tenho essa mania de não me render a qualquer tipo de idealização de lugares turísticos e afins que pertencem a povos colonizadores; sou chata para caramba com isso e geralmente essa minha atitude é interpretada como indiferença e eu sou vista como esnobe. Paciência).
Ao mesmo tempo, o fato de estar prestes a encarar uma coleção de objetos roubados de tantos lugares importantes para a história da humanidade evocava um certo ar de sagrado. Terem sido roubados do seu lugar de origem não torna a presença desses objetos menos especial.
De tudo que tem dentro do British Museum, a peça que mais me interessou foi um leão de pedra gigante. De 800 a.C, pertencia ao império assírio, e foi construído para guardar o templo de Ishtar em Nimrud.
Passei um bom tempo conversando com o leão mentalmente. Não sei exatamente qual foi o impacto que aquele leão em particular me causou, mas algo nele me emocionou. É simples dizer que peças de arte podem evocar emoções fortes — tipo na primeira vez que vi ao vivo um Monet e comecei a chorar compulsivamente, para minha total surpresa e despreparo (e uma mulher aleatória no museu d’Orsay, em Paris, falando “é normal, é normal”) —, mas o leão não está ali na qualidade de obra de arte. Está ali como objeto da antiguidade, a estátua de pedra que ele é.
Quantas pessoas olharam para aquele leão como eu estava fazendo naquele momento? Quantas delas se emocionaram como eu estava me emocionando sem entender porquê? São quase 3 mil anos de existência daquela pedra esculpida em forma de leão.
Três. Mil. Anos.
Na maior parte desse período as pessoas não estavam expostas a tantas imagens como nós estamos hoje. Imagina o impacto.
Será que as pessoas que esculpiram o leão sabiam que em 2016 uma mulher brasileira (conceito que existiria só dali uns milhares de anos) ficaria encantada com a peça dentro de um museu britânico (outro conceito que só existiria dezenas de séculos depois)? Claro que não. Mas ali eu estava.
Na frente do meu leão de pedra, está posicionado um par de leões alados com faces humanas. Aqueles também me chamaram atenção. Não tanto quanto o leão de Ishtar, mas me deram certa comoção sim. (Inclusive porque me lembram muito a esfinge do Castelo Rá-tim-bum).
São os leões que guardavam os portais de Shalmaneser, um rei neoassírio. Em seus lugares de origem, os 3 leões não estavam muito próximos fisicamente. Mas no British Museum, eles são obrigados a se encarar frente a frente para sempre.
No ano seguinte, 2017, encontrei outro par de leões: em Berlin, no Pergamon Museum. Meus novos leões também guardavam os portais de Ishtar, na cidade interna da Babilônia. Eles tem cerca de 2 metros de altura e 3 de largura. São esculpidos em dolerito, uma pedra cinzenta, formada de rocha vulcânica e de textura granular. A olhos nus, parecia uma pedra bem dura. Também foram esculpidos em algum momento entre 1000 e 800 a.C.
Esses são os leões de Sam’al.
Não sei se era a presença dos próprios portais de Ishtar no corredor seguinte no museu, mas daquela vez eu fiquei ainda mais tempo em silêncio na presença dos leões. Como se fosse um momento sagrado entre eu e a força do tempo. A permanência da pedra através da história e a única razão para fazê-la diferente de todas as outras rochas do mundo: o desejo dos seres humanos de se expressarem. Artística, religiosamente. Não importa. O nosso desejo de criação transforma até a natureza indomável, bruta.
A força
Os primeiros registros do uso de cartas como símbolos e oráculos trazem um conjunto de figuras que é incorporado pela maioria dos baralhos de tarot até os dias de hoje. Goste você ou não do assunto, os símbolos estão espalhados por todos os lugares e ninguém está livre de absorvê-los (consciente ou inconscientemente).
O símbolo da força desenha uma mulher dominando um leão. Por vezes com delicadeza, outras vezes com violência, depende da interpretação do artista. O arquétipo da força na simbologia fechada do deck de tarot Rider-Waite-Smith, o mais popular, representa a nossa força interior.
No tarot de Thoth (à esquerda na imagem acima), a força é uma mulher montando o leão. Nessa versão, ela é chamada de Luxúria. A figura toda parece estar debaixo da própria terra, onde essa mulher nua (a paixão, o desejo, a força que nos compele a viver) vem montada neste leão formado por homens e criaturas. Muitas fontes que analisam a simbologia dessa versão específica do tarot apontam um potencial de imortalidade e criatividade, enquanto se doma uma besta entre as pernas.
Já na carta da força no tarot de Marselha (à direita), o esforço de dominação sobre o leão fica do lado debaixo do corpo da mulher (da cintura para baixo), indicando um desenvolvimento de algo que vem das profundezas. Debaixo. Note como a cabeça do leão surge de um ponto específico do vestido dela. No topo da cabeça, o chapéu na forma do símbolo do infinito. O corset protege o coração.
É uma carta que simboliza renascimento, força, criatividade e inteligência, em termos mais gerais.
Ishtar
No início deste ano, numa videocall muito animada, uma pessoa me perguntou se eu não queria escolher uma carta de um certo baralho de deusas. Sem motivo nenhum, só pela diversão. Eu topei. A carta que escolhi se revelou ser a deusa mesopotâmica Inanna. Nunca ouvi falar e não dei muita bola no dia.
Um tempo depois, por circunstâncias da vida, topei com uma escultura antiga de Ianna pela internet. Inanna aparece em muitos lugares, inclusive no clássico épico de Gilgamesh (o rei sumério que queria alcançar a imortalidade), como deusa do Céu e da Terra, que começa na história com muita insegurança e incerteza. Enquanto Gilgamesh busca a imortalidade para que todos conheçam o seu nome até o fim dos tempos, Inanna busca poder. E toda vez que ela alcança um pouco de poder, ela volta para sua cidade e dá esse novo poder ao povo.
A maioria dos papers acadêmicos que analisam os estereótipos dessas duas figuras no épico, apontam que ambos retratam facetas da busca humana por identidade. Um temendo a morte e lutando contra ela; o outro, tremendo a morte, mas a abraçando. Quando Inanna chega no submundo, ela vai se despindo. Se abrindo para as sombras e deixando seus medos a atravessarem.
Além disso, descobri que Inanna é simplesmente outro nome para a deusa assíria Ishtar, aquela dos portais da Babilônia. (Em português, às vezes chamam de Istar).
Os leões são um dos símbolos de Ishtar/Inanna.
O desejo
Não é o desejo de todo artista driblar a morte, ainda que seja impossível vencê-la?
Não é a premissa de toda religião explicar a morte, ainda que seja impossível verificá-la?
A morte de Anne Rice
Acordei hoje com mensagens carinhosas de amigos preocupados comigo, me mandando abraços etc. Descobri então que Anne Rice acabou de falecer. Aos 80 anos.
A morte é o tema da obra de Rice. A morte era um dos temas da sua vida.
A artista que criou Lestat de Lioncourt (valente como um leão), o homem que virou pai da própria mãe ao torná-la uma vampira.
A artista que deu à luz a família Mayfair e seu fantasma de guarda, Lasher, que insiste em atravessar os limites da morte para criar vida com os vivos.
A artista que desceu ao simbólico submundo para retornar e nos falar de todos os assunto tabus que os homens jamais teriam coragem de expor.
A artista que ressignificou a morte da própria filha na figura de uma vampira criança, dando uma chance ao seu imaginário de lidar com a mais amarga das tristezas da vida.
A artista que desce ao mundo dos mortos, como Ishtar, alcançando a imortalidade pela força de suas palavras e dividindo o poder da sua sabedoria com o público.
Anne Rice deixa um legado e se eterniza através da sua arte em nossa imaginação.
Me despeço dela com um simbólico sorriso de quem entende que, enfim, ela descobriu a grande verdade.
Descanse em paz.
…
Um abraço para quem chegou até aqui.
Vanessa Guedes.
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