Os estados emocionais da água
Eu disse que não ia, mas aqui estou. Mais um texto nesse ano morimbundo. Nada mais “eu” do que quebrar promessas que fiz sem tesão, no pico do cansaço.
Uma vez no bairro Tristeza, em Porto Alegre, eu e meu melhor amigo prometemos que nunca íriamos beber alcóol e usar drogas na vida. Com isso, escolhíamos ser bons. Exatamente dez anos depois, bêbados e fumando maconha numa mesa de bar em Amsterdã, prometemos que nunca mais iríamos deixar de nos falar.
Já se vão seis anos que dissemos tchau e até agora nada. Mas continuo amando-o como já amava aos quinze anos de idade. Somos coerentes e constantes como os filósofos e poetas de boteco desde antes de aprendermos a beijar na boca.
Aviso: pode conter erros de português, de digitação e de índole.
O lago
Congelado
Hoje fui até o lago congelado que fica a 5 minutos aqui de casa. Quando cheguei na beira, avistei minha amiga e o filho já andando sobre o gelo. Congelei. Não de frio, mas de medo. Eu sabia que eu deveria pisar na água e ir andando até eles. A criança me esperava de braços abertos e eu ali parada. Gritei que nem uma idiota para eles, avisando que não queria descer da plataforma de madeira do píer. Eles andaram até mim. A criança disse que estava tudo bem, que havia um caminhão de lixo no seu quarto, um brinquedo, presente de Natal, e isso significava que nós só podíamos acabar o dia brincando de lixo, que tudo bem andarmos sobre a água congelada juntos, que a palavra liquidificador era a coisa mais difícil do mundo e nós dois a falávamos perfeitamente.
Encorajada pela criança me esperando, desci. Eu tremia. Mas respirei fundo e fui. Na nossa volta, famílias andavam de patins fazendo piruetas e varrendo a neve, outras jogavam hóckey e casais jovens se isolavam como ilhas, tirando selfies e acenando de luva. Minha amiga (que também vem de outro país) disse que enquanto os suecos estivessem levando suas próprias crianças para andar no gelo, nós estaríamos seguras. Caminhamos em direção ao sol.
Depois de cerca de quinze minutos, já estávamos longe demais das bordas. Mesmo que o gelo não tivesse cedendo sob nosso peso, lembrei que nunca aprendi a me mover corretamente em situação de rompimento (quando a calota de água congelada se quebra e a morte aguarda feliz embaixo). Pedi para continuarmos a caminhada por terra e minha amiga cedeu, ainda que estivesse claramente mais afim de ficar andando sobre o gelo do que ir pelo chão rochoso da margem.
Líquido
Em solo seguro, ela riu de nós duas e disse que era engraçado porque no verão eu era corajosa. Que no calor e na água líquida eu era aquela que nadava mais longe, que ia de um lado a outro do lago empolgada, mergulhava e sumia, invadia a área das plantas e parecia que sempre tinha morado ali dentro. E é verdade. No verão, quem tem medo da água e pede para sair do lago é minha amiga. Eu sou o próprio mamífero aquático. E ela, que morre de medo de mergulhar e nadar, sempre precisa negociar comigo a hora de voltarmos para a terra.
Tão poético é o mesmo lago botar medo em nos duas, cada uma em uma época específica do ano. Lembrei que a mesma criança que hoje me deu a mão para me guiar pelo gelo, foi a aquela que se jogou em minha direção no verão, dando seus primeiros mergulhos e confiando em mim para entrar no mesmíssimo lago.
Talvez seja isso a amizade. Um lago que se transforma pelo tempo, que cada um atravessa do jeito que pode. Que impõe limites diferentes para pessoas diferentes, onde ambas aprendem a ceder e confiar quando preciso.
Como vocês andam atravessando os lagos da vida? Quem espera o mergulho de vocês na água? Quem lhes estende a mão para andar sobre o gelo?
Incêndio na Escrivaninha & mais
No podcast que produzo com a Ana e o Thiago, lançamos dois episódios nos últimos dias:
Incêndio Awards - Especial de fim de ano, com premiações para nossas leituras e uma breve retrospectiva de todos os episódios de 2021.
Dicionários - E segue a temporada de coleções e acervos. Nesse episódio, conversamos sobre nossos dicionários favoritos e nossa relação com eles.
Você pode ouvir os episódios do Incêndio na Escrivaninha em todos os tocadores de podcast, no Spotify e Youtube.
Também tive a honra de participar do podcast vizinho, o Não Pod Tocar, pistolando de leve (que eu ando muito mansa ultimamente) no episódio Podcast como Campo de Disputa. Também disponível em todas as plataformas.
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Um abraço para quem chegou até aqui.
Que vocês tenham uma feliz virada de ano novo.
Com carinho,
Vanessa Guedes.
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