Uma autora publica um texto sobre um escritor mais velho, mais famoso, que acabou com a vida dela cerca de quinze anos antes. Em Paris, Zoé trabalhava como assessora de imprensa de Oscar, o tal escritor, e sofria com as manifestações violentas de afeto dele. Ele estava apaixonado por ela, mas não era correspondido. Era complicado porque no trabalho como assessora de imprensa, a missão de Zoé era falar bem do cara, elogiar seus livros e sua carreira. Oscar ficava bêbado e perseguia Zoé pelo escritório, tentava ficar sozinho com ela a qualquer custo, fazia declarações de amor extensas por SMS direto no telefone privado dela. A mulher entrou em depressão por conta do assédio, a situação profissional delicada e o medo de retaliação caso reagisse. O cara era muito famoso. Mais de uma década depois, já bem longe do emprego de assessora, ela coloca a história na internet e o circo pega fogo. Oscar é cancelado.
Essa é a premissa do livro Querido babaca, da francesa Virginie Despentes, publicado pela Fósforo em 2024 e traduzido por Marcela Vieira. Foi o primeiro livro que eu li em 2025, na primeira semana do ano — meu namorado veio visitar do Brasil e trouxe um exemplar na mala especialmente para mim, que estava ávida para ler um livro do qual nada sabia, mas de uma escritora que eu admiro (e que não tinha nada a ver com as leituras para faculdade, trabalho, freelas etc). É um clássico epistolar. Traz os emails trocados entre Oscar e Rebecca, uma atriz parisiense famosa que foi vizinha dele na infância e com quem perdeu o contato depois da adolescência. Os emails são atravessados por posts do blog de Zoé Katana, a moça assediada no passado. Todos os textos poderiam ser tranquilamente edições de newsletter.
A prosa discorre sobre quatro assuntos-pilares: as consequências do cancelamento de Oscar, a relação de Oscar e Rebecca com bebida e drogas, a visceralidade da internet e o envelhecimento. Despentes não se rende a um didatismo panfletário para fazer militância, tampouco simplifica a história. Ela faz o caminho contrário, explora a fundo a miséria que é estar vivo e online.
“Quando um estudante publica a foto de uma menina lhe fazendo um boquete, ele precisa saber que terá o nome divulgado e que será humilhado. Devemos ensinar para as meninas que elas têm mais é que ficar orgulhosas de suas mamadas. É estarrecedor saber que algumas pensam em se suicidar porque há fotos delas se divertindo com caras com quem estavam saindo. Quem tem que pensar em se enforcar é quem faz uso do seu privilégio machista para humilhá-las. Os estudantes deveriam é prestar uma homenagem às boas boqueteiras, isso sim. Em vez disso, somos sempre reprimidas por querer trepar com eles. E quando recusamos é ainda pior”
p. 27
Em uma cena, já perto do final do livro, Oscar e Zoé se encontram em um quarto de hospital, visitando um paciente com quem ambos tem relação. (Não darei mais detalhes para não estragar a experiência de quem vai ler o livro ainda, então fiquem tranquilos que os comentários vão tentar preservar algumas das surpresas da história.) O encontro deles não é nada amistoso, mas na saída, na cafeteria do hospital, eles são fotografados por pessoas que os reconhecem da treta nas redes sociais. E é claro que a internet toda cai em cima — não de Oscar, mas de Zoé. E ela é pressionada a se posicionar publicamente sobre um encontro que aconteceu na privacidade da vida. E por uma infeliz coincidência.
Rebecca, a atriz famosa com quem ele se corresponde, vai atrás de Zoé para dar suporte. Ela não é a única pessoa que mantém um laço com Oscar e que ainda sim apoia Zoé. Esse, na minha opinião, é o maior acerto do livro. Porque Oscar não é poupado nem por Rebecca, nem pela própria irmã. Nem pela própria filha. Todas as mulheres na vida dele o confrontam de modo brutal. E se no início ele tenta desviar desse confronto, ao longo do livro ele vai se soltando e recebendo o ódio de coração ora aberto, ora fechado. Não é um processo bonito de acompanhar, mas eu gosto muito como a Despentes cria um Oscar complexo sem retirar a culpa de seus ombros. Me lembrou muito o protagonista de Boa Sorte, de Rosa Montero, outro livro em que mergulhamos de cabeça (e de lupa) num assunto mega espinhoso. Mas diferente de Despentes, que expõe a treta logo de cara, Montero faz com que a gente vá descobrindo o assunto aos poucos, até revelar sobre o que se trata nos últimos capítulos.
Em dado momento no livro de Despentes, em um evento literário na Alemanha, Oscar recusa participar de um podcast de uma moça feminista. Ela vai atrás dele, lhe entrega uma carta, e continua o perseguindo pelo evento literário que ambos participam. Ele começa a desviar dos lugares onde ela está. Ela vai impondo sua presença mais e mais. Na carta, Fanny revela que na verdade está à favor de Oscar, que é sua fã e fiel ao seu ídolo. A perseguição silenciosa continua, Fanny insiste em mostrar que está ali e está o observando onde quer que ele vá. Ele foge a todo custo.
Então Oscar, sóbrio pela primeira vez na vida adulta, dentro da segurança de um quarto de hotel, reflete:
“Eu pensava na moça do podcast. Não conseguia esquecê-la. De repente entendi. Eu sou a Fanny. É por isso que ela me deixa tão apavorado. Eu sou a Fanny. Lembrei da Zoé e de como ela costumava fugir antes do fim das refeições das quais eu participava. De como se distanciava de mim. [...] Eu sou a Fanny. Mas uma Fanny bêbada, chapada, autorizada a insistir porque sou homem e não estava ajudando na cozinha: eu era um autor com certa importância que se achava no direito de insistir. Alguém de quem você não pode escapar.
Uma vez formulado esse pensamento, você se pergunta como fez para ignorá-lo por tanto tempo. Fui pegar a carta de Fanny e a reli. E eu a via, na sala e no jantar, dando voltas ao meu redor sem falar comigo. Então isso me veio à mente. Minha certeza. A certeza de que eu podia impor meu desejo devorador a Zoé. De que ela devia ceder.”
p. 217
O livro tem um efeito de internet. Pois conhecemos Zoé apenas pelos posts de seu blog e pelo que Oscar e Rebecca comentam sobre ela um para o outro. Aqui cabe lembrar daquela frase super usada nas redes “quem me conhece, sabe” — que é uma derrota, porque na internet ninguém está falando apenas para as pessoas que lhe conhecem na vida real, está se falando para quem conhece você aos picotes, aos fragmentos. E Despentes provoca essa experiência mesmo numa narrativa extremamente pessoal.
Fica a dica de leitura para quem quer pensar um pouco mais além sobre as relações de poder na indústria da arte — não só a literária, mas a cinematográfica também.
Em 2025, vou escrever resenhas de livros. Eu já faço isso organicamente em muitos textos, mas quero fazer de forma mais explícita daqui a para frente. Essa foi a primeira.
Expediente
Neste semestre eu estou escrevendo minha tese de bacharelado em literatura. No Brasil convencionamos chamar o Trabalho de Conclusão de Curso de TCC. Aqui na Suécia é tudo tese. Tese de bacharelado, tese de mestrado, tese de doutorado. Eu me confundo quando comento com os amigos, mas o que importa é que eu estou amando escrever minha tesesinha querida. Por isso a newsletter vai continuar sem dia fixo, mas vai permanecer vindo pelo menos uma ou duas edições por mês. Fiquem tranquilos.
Vem aí
Na próxima edição, a newsletter vai vir com um visual atualizado feito pela Hele Carmona, da Makers gonna make. Aguardem.
Outras resenhas sobre Querido Babaca:
Querido babaca ou o lamentável depreciador, por Mayara Dionísio.
🛸 Sinal de vida
Nesta seção, trago coisas interessantes para você conhecer sem precisar acessar nenhuma rede social.
Diretório de mulheres no metal;
Arquivo com mais de 300 livros de arte de museus do mundo todo.
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Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Eu amei esse livro qdo li ano passado. Gosto muito da forma como a Despentes elabora uma complexidade IRL das personagens, que não são boas ou ruins mas apenas são e se permitem transformar.
Nossa, quando você começou a comentar achei que era uma história real e depois fui entendendo que se tratava da resenha de um livro. Adorei.