Você já experimentou repetir uma palavra várias vezes até que ela perca seu sentido?
Esses dias eu topei com a palavra “palhaço”, assim meio do nada, e fiquei repetindo e repetindo até que o som e as letras não me diziam nada. Palhaço. Que palavra mais estranha. Em dado momento eu só escutava palha e aço. Como se o palhaço fosse um delírio, uma ilusão do meu cérebro, uma memória falsa.
E no entanto, lancei a palavra palhaço no google e tudo que a paǵina me retornou eram imagens de pessoas com o rosto pintado, roupas coloridas, balões de festas infantis.
Palhaço.
“Saciedade semântica é um fenômeno psicológico em que a repetição faz com que uma palavra ou frase perca seu sentido temporariamente para o ouvinte, que então percebe a fala como sons sem sentido.”
(Tradução livre. Semantic satiation. Wikipédia gringa, 2021)
- artigo enviado pelo meu amigo Alexandre.
O que eu fiz com a palavra palhaço é mais ou menos o que temos feito com as pessoas no Twitter. Pegamos uma frase solta e a despimos da complexidade do ser humano que a escreveu. Repetimos e repetimos até criarmos narrativas e re-interpretarmos até mesmo o que a pessoa não disse. Aliás: principalmente o que a pessoa não disse. A palha e o aço arrebentando a carne do palhaço.
Eu li o livro Duna pela primeira vez em 2006, às vésperas de completar 16 anos.
A tristeza em saber que jamais leria Senhor dos Anéis e Harry Potter pela primeira vez me arrastou para Arrakis. Naquela época meu coração ansiava se apaixonar outra vez por um novo mundo, uma nova língua, uma nova maneira de existir.
Fiquei dias pensando se era fantasia ou ficção científica, mas decidi que se Star Wars era ficção científica, com certeza Duna também era. E não, eu não gostava de Star Wars e continuo não gostando. Olha, eu nunca ousei escrever essas palavras juntas antes. Não gosto de Star Wars. Inclusive, estou morrendo de medo de escrevê-las aqui nesse momento. Nem meus pais, minha irmã, minha terapeuta e meus melhores amigos sabem que eu não gosto de Star Wars. Esconder esse fato — até dentro da sala de cinema, assistindo aos filmes da franquia ao longo da minha vida toda — faz parte de mim. É um segredo bem íntimo que compartilho com vocês agora. (Bom, o nome da newsletter é “segredos em órbita”, em algum momento eu tinha que contar um segredo de verdade por aqui).
Mas eu amo absolutamente a série Duna. E assim como minha ausência de afeto por Star Wars, meu amor gigante por Duna e minha opinião radical sobre a nova adaptação continuam ocultos das redes sociais. Salvo ocasionais comentários isolados sobre os livros no passado. Veja bem, eu não sou lá grande coisa em rede social nenhuma, mas a possibilidade de postar qualquer opinião sobre o filme novo me paralisou. Gostando ou não gostando, me parece que sempre haveria uma forma de estar errada para alguém.
A primeira vez que tive um texto publicado foi em 2002, aos 12 anos de idade. Quando não existiam redes sociais e eu ainda não tinha sequer um computador. Publicaram um texto meu na coluna do leitor do jornal Diário Gaúcho, criticando a situação deplorável de algumas bibliotecas públicas de Porto Alegre. Eu nunca vou me esquecer daquela sensação. Era como se eu tivesse sido ouvida pela primeira vez. A concretude das minhas palavras impressas naquele jornal circulando pela cidade toda me mostrou que o que eu tenho a dizer importa. Que eu tenho um jeito mágico de habitar o mundo. Como se minha voz tivesse adquirido um aspecto que me era então desconhecido. Como se minha escrita fosse meu superpoder escondido.
Escrevo, logo, existo.
Foi sim como existir pela primeira vez.
É estranho pensar em como uma coisa tão pequena quanto um texto de mais ou menos 200 palavras pode mudar a vida de alguém.
É estranho pensar como um texto de menos de 480 caracteres pode mudar a vida de alguém.
Eu não sou famosa. Não sou autora best-seller. No entanto, tenho compromissos comigo mesma que extrapolam a vontade colossal de sumir das redes sociais para sempre. Principalmente do Twitter.
Não importa o que eu penso sobre o Twitter. O grosso do meu pequeno alcance está lá, meus leitores vem de lá, meu engajamento mora lá. Veja bem, eu fiz muitos amigos no Twitter. Estou lá desde 2008. Inclusive, ainda me divirto muito naquela timeline. Nesse sentido, posso afirmar com tranquilidade que a rede social é legal, sim.
Será?
A questão é: eu nunca tive motivo nenhum para avisar as pessoas que eu não gosto de Star Wars. Nem na vida real, nem na vida digital. Qual seria o objetivo em comunicar isso? O que isso me traria de bom?
Nada. Absolutamente nada. Mesmo que, como uma profissional da narrativa, eu pudesse escrever um artigo extenso sobre os motivos concretos que me fazem não gostar de Star Wars, eu simplesmente não tenho motivos nem motivação para fazer isso.
Eu não odeio Star Wars. Eu só não gosto. Ponto.
Também não tenho rancor, pena ou qualquer emoção que valha a pena ser mencionada sobre qualquer um que gosta de Star Wars.
Mas meu amor por Duna... Esse eu queria MESMO compartilhar sempre que pudesse. Com todas as críticas e problematizações que a história merece — e que o século 21, a internet, o acesso à informação e a própria evolução do meu repertório político, literário e de vida trazem. Amar uma obra jamais deveria ser sinônimo de “passar o pano” para ela incondicionalmente.
Olha, eu queria postar alguma coisa, qualquer coisa, sobre minha opinião a respeito da última adaptação de Duna em um texto de 480 caracteres no Twitter. Ninguém está me impedindo de fazer isso.
No entanto, parece existir um motivo para não fazê-lo.
Talvez eu tenha vivido até agora sem saber nada, absolutamente nada, sobre como funciona a vida, as pessoas e tudo mais. Me tomou um bocado de tempo e esforço para ser menos ignorante do que eu era até dois dias, dois meses, dois anos, duas décadas atrás. E ainda sim estou aqui, cheia de medos irracionais, receios apocalípticos quando sei que nada sou nesse scroll infinito de usuários. Talvez eu não queira correr o risco de me tornar o palhaço da vez, aquele tweet que as pessoas vão ler ignorando o sentido, acreditando no que melhor convir. Não quero ser o palhaço que as pessoas vão repetir e
repetir,
retweetar
com comentário,
retweetar com
comentário,retweetar
com comentário,retweetar
com comentário,
até que minha voz,
meu superpoder,
seja abafada por palha,
a garganta cortada à fio de aço,
até que a pessoa
por trás das minhas palavras
desapareça
como um trapo,
um número,
um tweet.
Jabá
Esses dias fui entrevistada no podcast Leia Novos Br, da rede Leitor Cabuloso. E contei a história sobre minha publicação aos 12 anos de idade com todos os detalhes.
O querido Caio Amaro me recebeu na biblioteca coletiva do podcast para falar sobre minhas obras de ficção e todos os projetos que estou tocando agora. Acessa lá. Tem no Spotify também.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Sent from my tamagotchi
Paulo Freire dizia, de forma muito mais sábia que as palavras a seguir, que o erro é espaço de aprendizagem. O medo de ser a próxima Geni (feita pra apanhar, boa de cuspir - que Chico perdoe a comparação- ) paraliza e não permite nosso crescimento.
Certa vez tive uma crise de enxaqueca que até hoje me soa como um pesadelo: além da dor de cabeça bem característica, eu perdi quase que completamente a noção de sentido das palavras. Foi meio que desaprender a falar por alguns instantes, e lembro de ter sido bem assustador ir até a cama da minha mãe e tentar explicar o que estava acontecendo. Eu tinha que falar devagar, tentando desvencilhar o pensamento do som das palavras e da forma como elas pareciam alienígenas e completamente incoerentes. Era a mesma coisa na escrita. Eu já não via conjuntos de palavras, e sim um amontoado de letras. Até hoje tenho medo de repetir palhaço e ouvir palha e aço, heheheh.
Queria falar muito mais sobre esse texto, mas pra não virar uma redação aqui, vou deixar só uma pergunta, assim como quem não quer nada: afinal, qual sua opinião sobre o filme de Duna? hahahahaha :>