Serpentes no mar e um lobisomem no espaço
Este título poderia ser o trecho de uma música folclórica do Djavan
TEMPO DE LEITURA: 6 minutos.
Considere essa aqui uma edição extra. ✨
O texto de hoje é uma carta – sim, outra! - para um escritor.
As pessoas detestam participar de amigo secreto porque sempre correm o risco de tirar o nome de uma pessoa que não gostam ou, pior, alguém que não conhecem bem o suficiente para ter qualquer opinião a respeito. Não foi o meu caso dessa vez. No amigo secreto que fizemos entre escritores de newsletter, eu estaria contente com qualquer pessoa do grupo que aparecesse para mim. Eu mesma recebi um texto lindo de presente da minha vizinha Munike Ávila (corre lá para ler e inscrever-se na newsletter dela). E agora, bem descansada pós-Natal, preparo o presente e a revelação de quem eu tirei no amigo secreto.
Vem aqui espiar o que eu escrevo para o Felipe Castilho.
Caro Felipe,
Você já se afogou? Eu já. Foi na praia do Imbé, litoral do Rio Grande do Sul, naquela parte do oceano que as pessoas amam chamar de chocolatão por conta da coloração marrom que as algas da região dão para água. Assim como os personagens de um dos meus livros de horror nacionais preferidos, eu cresci passando pequenas temporadas no litoral durante as férias de verão. Ninguém gosta das praias do sul, apenas os próprios gaúchos e os argentinos que cansam de dirigir antes de chegar às praias de Santa Catarina. Na primeira vez quem me tirou da água foi meu pai. Da segunda vez, foi um salva-vidas. Em nenhuma das vezes eu me afoguei o suficiente para precisar de primeiros socorros (meu corpo expeliu água sozinho), tampouco nenhum dos sustos foi suficiente para me fazer ter medo de mar. Quanto mais velha eu fico, mais fundo eu vou. Mas embora eu não tenha desenvolvido uma fobia, não quer dizer que esses episódios não tenham me traumatizado de alguma forma.
Existe um momento desesperador no afogamento que é quando você não consegue controlar o próprio corpo e de repente ele tenta respirar por conta própria. Mas você está submerso e simplesmente recebe água pelas vias nasais ao invés de ar. Você sente as células gritando “ar, ar, ar!” e a única coisa que vem é água, preenchendo todas as cavidades por onde o corpo tenta buscar oxigênio. É como se os poros se transformassem em micro agulhas te furando por dentro até que o corpo começa a colapsar, você quer gritar, mas não tem controle nenhum sobre si mesmo. De repente você percebe que não há volta, é isso mesmo, fim da linha. É como um descolamento do corpo, onde uma parte de você entende, aquele lado racional que ainda dá os últimos sinais de vida, mas o corpo ainda te pinica inteiro, como um alerta de sobrevivência impossível de ser desligado “ar! Por favor, ar! Agora!”. Então, a força que te puxa para fora do mar parece pertencer a um gigante. Apenas um titã, um deus ou algo muito maior poderia te arrancar para fora do fim da linha. O contato com o ar é uma porrada de leveza. “Toma aqui, VIDA”. Por isso a primeira respiração fora d’água não é um mero alívio, tipo quando a gente faz xixi depois de um bom tempo segurando, mas uma sensação plena de ressurreição.
Há anos eu não lembrava dessa sensação, mas quando eu li Serpentário, teu último romance, eu lembrei. E com a mesma intensidade, esse livro me lembrou da felicidade dos primeiros amores na praia. Da dinâmica da aventura com os amigos que eu encontrava uma vez por ano e a adrenalina que eram nossos reencontros janeiro após janeiro, a atualização das nossas pequenas mitologias e a evolução das aventuras conforme a gente ia ficando mais velho.
Sabe, Felipe, algumas leituras dão quentinho no coração e outras dão bruscos banhos de água gelada. A real boa literatura te faz ter os dois. Além disso, enquanto lia Serpentário, houve um dia que sonhei com cobras. Nunca tive medo delas, mas de repente criou-se na minha cabeça um receio meio afetado, uma estranheza com a forma inquietante com que elas se mexem arrastando a barriga contra o chão. O sibilar do movimento de arrasto foi possuindo uma parte do meu imaginário até então desconhecida. Até que pensar na existência de uma tal Ilha das Cobras ficou meio insuportável. Lugar-chave na composição da tua narrativa, não posso nem dizer que “alugou um triplex no meu cérebro” porque uma ilha é muito maior do que um triplex.
Creio que a boa literatura é aquela que invoca nossos demônios e as lembranças mais avassaladoras da vida para a superfície da memória. Mas a excelente literatura é aquela que faz isso e ainda cria novas emoções e sentimentos no coração de quem lê.
Eu sei que deveríamos escrever sobre algum texto da newsletter de quem tiramos no amigo secreto. Mas eu jamais poderia perder a oportunidade de falar sobre Serpentário e do quanto aprecio a tua sensibilidade em usar uma mitologia tão nossa, tão brasileira, para falar de medo, política e redenção. Fica aqui meu elogio como colega escritora e meu agradecimento imenso como leitora. Obrigada por parir essa história.
Espero que esse Natal tenha sido generoso contigo.
E bora lá que falta pouco para posse do Lula!
Beijos, abraços e toda forma de inspiração artística.
Vanessa.
Lobo no espaço
Galera, além de escrever livros de horror e fantasia, o Felipe mantém uma newsletter em forma de história em quadrinhos. É a história de um lobisomem explorando o espaço, a serviço dos vampiros do “hemonegócio”. Eu fui assinante durante 2021 e recomendo demais para quem gosta de humor e política.
Me atrevo a deixar uma das capas aqui para vocês sacarem o tom:
Quem quiser ler, vai lá no Catarse do Felipe assinar a newsletter.
Satélite de recomendações
O Daniel Gruber abriu inscrições para um curso de edição de texto. “Escrevi um livro e agora?” foi feito para quem tá com livro na gaveta e não sabe o que fazer. Já fiz curso com o Daniel e indico com tranquilidade. Clique aqui para saber mais.
Essa carta da Ana Rusche, sobre como é ser romancista hoje, para a Ariela K (ainda na onda do amigo secreto de escritores) está um primor.
Jabá
Coloquei no ar, aqui no substack, uma página com a lista dos meus escritos de ficção. A maioria dos textos está disponível gratuitamente pela internet e eu ia adorar que mais leitores aqui da newsletter conhecessem meu trabalho com ficção também.
E se você quiser me dar um presente de natal, sinta-se livre para conferir minha lista de desejos.
Lembrando que essa newsletter tem uma versão para quem quiser apoiar o meu trabalho. Em breve devo publicar a primeira recompensa para os apoiadores. Talvez esse seja um bom momento para você se tornar um!
Por hoje é só!
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
bela resenha do “Serpentário” 🐍. e gracias pela menção 📚
Quais são teus livros de horror nacional favoritos?