A primavera está chegando aqui em Estocolmo. Quero dar boas-vindas aos pássaros e às pessoas que chegaram aqui nos últimos dias. Olá!
Espero que a jornada por aqui seja tão feliz quanto a viagem que compartilho com vocês nesta sexta-feira preguiçosa.
Aviso: pode conter uns errinhos de digitação e gramática. C’est la vie.
O relato dessa viagem está dividido em três partes:
Vislumbres de liberdade
É melhor ser infeliz em Paris
Viagem ao submundo
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Vislumbres de liberdade
Havia algo de reconfortante em estar dentro de um avião voando da Suécia para a França, onde ninguém me conhecia. Talvez seja esse o encanto em morar tão longe e estar sempre desejando o trânsito, a rota para o desconhecido. Se sou anônima para essas pessoas aqui, quem sabe eu não possa ser uma desconhecida para mim mesma também? Quem era essa que poderia surgir dentro da minha cabeça, nesse novo plano, nesse desconhecido lugar?
Na fileira de poltronas estranhamente amarelas, eu me encontrei espremida entre duas mulheres, uma adolescente de unhas azuis compridíssimas e uma senhora de cabelo branco bagunçado com um livro no colo; mesmo apertada entre elas, eu conseguia escrever à mão no diário. Sentia-me bem entre as duas mulheres, nós três como a tríplice figura emblemática de uma deusa celta. Começo a lembrar agora das unhas enormes da garota porque anotei tudo no diário. Nem ela e nem a velha tentaram espiar minhas palavras — gosto disso nas pessoas do norte. O benefício da privacidade.
Eu estava num período entre-empregos. Gostava muito do meu trabalho e foi por causa disso, exatamente disso, que precisei ir embora. Depois de dedicar-me a um projeto bacana por mais de um ano, a empresa mudou o foco da cartela de clientes e suspendeu tudo. Assisti equipes inteiras vendo o trabalho de um ano todo sendo jogado fora, e ninguém pareceu se abalar. Trabalho é trabalho, né? Estávamos pagos. Bem pagos. Um salário após o outro, vendemos nosso tempo. Trocar a mão-de-obra por dinheiro, é assim que se fala, né?
Naqueles dias, lembrei muito da época em que eu era caixa e ganhava infinitamente menos, mas tinha consciência de que meu trabalho era aquilo e nada mais: um atendimento após o outro, generosidade com todos e paciência com o desespero alheio. Era simples. Quando foi que as coisas deixaram de ser simples? Ah sim. Quando eu comecei a conviver com pessoas para quem o trabalho deveria significar algo a mais. Ter um sentido, um propósito maior. Por isso a tristeza profunda em ver o fruto da dedicação ser descartado com tanta facilidade. Não era mais apenas por dinheiro. Tinha sido o meu tempo ali. Jogaram fora o meu tempo. Existe coisa mais conectada à vida do que o tempo? Um pedaço da minha vida ruindo diante dos meus olhos e eu me sentindo culpada por estar triste. Pois desejar coisas mais significativas na vida e no trabalho não é direito de quem nasceu na classe trabalhadora. A classe trabalhadora sobrevive. Ter uma carreira, e enxergar um propósito nas coisas que se faz com o tempo, é coisa de quem tem dinheiro para fazer o que quiser da vida. Condições de escolher.
Infeliz com aquilo tudo, troquei de emprego. Como se mudar de empregador fosse mudar as coisas (spoiler: não mudou nada) e me vi com algumas semanas de folga entre um job e outro. Aquela agonia sobre o tempo e a vida martelando meu peito. E mais: pela primeira vez, em toda minha vida, eu tinha condições de não estar preocupada em sobreviver. Depois de tantos anos vivendo de salário em salário, era estranho não estar desesperada ou contando as moedas para ver se poderia tomar uma cerveja com os amigos na sexta-feira. Eu simplesmente podia fazer coisas simples sem pensar o tempo todo em cada centavo gasto. Esse tipo de coisa mexe com a gente. E ninguém nos prepara para lidar com essa… liberdade.
Foi esse primeiro vislumbre de liberdade que me levou à Paris naquele quente mês de junho. Quando descobri-me livre, alguma coisa em mim se quebrou. Talvez tenha sido a culpa. Sim, me lembro de pela primeira vez na vida sentir-me livre da culpa e foi assim que perguntei-me: se eu não tivesse compromisso com nada e nem com ninguém, se dinheiro não fosse problema, o que eu gostaria de fazer agora na minha vida? Bem.
Eu acho que gostaria de conhecer as Catacumbas de Paris.
Sim, foi exatamente isso que pensei.
É melhor ser infeliz em Paris
De todos os guias de papel sobre a cidade que existem no mundo, eu escolhi um livro de Ernest Hemingway como orientação. Paris é uma festa é uma coleção de reflexões de quando ele viveu na cidade, na década dos seus 20 anos. Eu compartilhava da mesma fase da vida com ele. Foi nessa ideia romanceada que me dei conta que faziam cerca de 100 anos que ele tinha escrito tudo aquilo. Usei Hemingway como contraponto à minha crise sobre o tempo e sobre a vida, mas segui meus próprios desejos quanto ao roteiro dos meus dias completamente a sós comigo mesma em Paris.
I decided that I would write one story about each thing I knew about. Aluguei um apartamento no 14º distrito de Paris, de uma moça artista. Surpreendi-me com a súbita intimidade com alguém que nunca vi nada vida, e provavelmente nunca veria. Nos falamos por whatsapp e ela me deixou as chaves escondidas na caixa de correio do prédio, onde eu entrei pela porta aberta do corredor e enfiei a mão pelo buraco das cartas. O apartamento estava arrumado, limpo, porém com todas as coisas dela. Eu estava acostumada ao ambiente impessoal de albergues, hotéis e airbnb's imaculados, mas aquele airbnb era diferente. As coisas dela estavam espalhadas por tudo — não era bagunça, era só um apartamento que não escondia que alguém morava dentro dele. Um apartamento vivo, com opiniões, perfumes e um peculiar interesse por livros de sexualidade e teoria marxista.
Eu estava suando bicas. Tomei o segundo banho do dia assim que cheguei no apartamento e desci para desfrutar de uma refeição no café do outro lado da rua. Sem internet, me ocupei de escrever no diário e ler o Hemingway enquanto espiava, de tempos em tempos, o cara fumando na mesa da frente. Fiquei ali por quase duas horas. E o cigarro do cara estava sempre queimando no mesmo ponto. Como era possível? Ele olhava para o mesmo lado da rua, como se fosse um gif, preso em um laço temporal de repetição. Uma composição de Magritte se pintou na minha mente.
Quando voltei ao apartamento, às 11 da noite, não tinha energia elétrica. Mas no resto do prédio tinha. Sentei no corredor empoeirado do último andar e liguei o celular na tomada para carregar. Bati na porta do apartamento vizinho. Um homem alto, de pau duro e vestindo apenas uma pequena cueca branca abarrotada com o elástico torcido, abriu a porta. Atrás dele, vi o pedaço de uma cama de solteiro bem baixa, onde uma mulher segurava a ponta de um lençol sobre o peito nu e olhava curiosa para mim. O pau do homem parecia tentar pular para fora do tecido branco, praticamente me saudando salut. Desculpei-me pela interrupção e perguntei se poderiam me ajudar. Não, não poderiam (óbvio). Bati no outro vizinho, um homem baixo que não falava francês, completamente vestido, mas ele não soube me ajudar. Ninguém sabia o que eu poderia fazer, nem a dona do apartamento, para quem eu liguei.
Escolhi chorar sozinha no escuro e no calor até cair no sono.
No dia seguinte, a dona do apartamento disse que iria lá ver o que aconteceu. Senti pena dela, pois estava na casa de um parente em outra cidade, teria que pegar um trem por horas para vir me ajudar. Triste pela situação incontornável, parti para mais um dia de turismo melancólico. Desci as escadas estreitas de espiral do prédio e esbarrei em um homem que trocava uma lâmpada no corredor térreo. Ele me viu embrulhando a chave do apartamento em um papel, que eu prenderia com uma fita adesiva por dentro da caixa de correio, para que a dona do ap pudesse entrar lá enquanto eu estivesse fora. Ele veio na minha direção perguntando o que eu estava fazendo. Não respondi. Ele me perguntou porque eu estava triste. Não sei se foi a surrealidade da situação, mas avaliei tudo rapidamente e decidi simplesmente respondê-lo. Em um francês capenga, expliquei toda a situação da energia elétrica do lugar que eu estava alugando. Ele então se ofereceu para ver a caixa da fiação elétrica do apartamento (que eu já tinha verificado várias vezes, ligado e desligado tudo, mas nada havia acontecido). Eu pensei algumas mil vezes naquele segundo: será que é hoje que eu morro?
Aceitei. Subi com um completo desconhecido para o último andar daquele prédio minúsculo, Paris 35 ºC abafando o raciocínio lógico, e me posicionei do lado de fora, a uma distância segura no corredor, enquanto ele inspecionava a caixa de energia lá dentro. Foi ali que pensei: esse apartamento nem é meu. Pensei nas inúmeras atrocidades que poderiam acontecer. Roubo, alguma coisa quebrar, a exposição da intimidade de outrem… Naquele momento, escutei um “oh!” de surpresa, vindo da área da cozinha. Então, um estalo. E o barulho da geladeira funcionando tomou conta do silêncio. O homem surgiu lá de dentro dizendo que bastava ter ligado e desligado um interruptor extra, atrás da máquina de lavar roupa, e isso era tudo.
Minha crise estava resolvida. Senti vontade de chorar de novo, de alívio. Por não ter sido morta, por ter sido recompensada por ter apostado na confiança que só os tolos têm, por poder ligar para a dona do apartamento e avisar que estava tudo resolvido. Merci beaucoup, monsieur. Merci, merci, merci! O homem aquiesceu e foi embora.
Passei por ele novamente quando saí do prédio, acenei.
Nunca mais o vi.
Viagem ao submundo
Estar viva é bom demais. E é na vida que podemos manifestar nossos desejos, mesmo os mais bizarros. Como habitual turista-de-cemitério, a ideia de visitar o lugar de descanso eterno de gente que nunca conheci é um costume que exige intimidade, desprendimento e disposição. Não é qualquer companhia que topa. Por isso, acho que sempre vi as catacumbas de Paris como uma impossibilidade: nunca convenceria alguém a descer até lá comigo. E foi só quando me senti livre que contemplei a possibilidade de fazer a visita sozinha.
É engraçado pensar nas catacumbas como essa experiência solitária, pois tudo a respeito delas evoca a ideia de coletividade e urbanização. De corpos humanos em proximidade. Tudo começou em 1780, quando o maior cemitério de Paris foi interditado por superlotamento. O Saints-Innocents estava tão abarrotado de gente morta descansando em paz, que a vida dos vivos ficou comprometida. A questão de onde colocar novos mortos virou uma demanda de saúde pública.
“A lotação do cemitério era tal que a população vizinha estava adoecendo devido à contaminação provocada pelo excesso de matéria orgânica em decomposição. No dia 9 de novembro de 1785, o Conselho de Estado francês decidiu pela necessidade de reformular o sistema de cemitérios de Paris e pela imediata tomada de providências. Novos cemitérios foram construídos na periferia da cidade, mas restava a preocupação do que fazer com os cemitérios superlotados já existentes.
A ideia de usar os túneis abandonados das pedreiras parisienses é creditada ao chefe de polícia, general Alexandre Lenoir, e levada a cabo por ordem de seu sucessor, o sr. Thiroux de Crosne.”
Fonte: Wikipedia em português.
Naquela época, Paris tinha uma coleção de intrincados túneis abaixo do solo. As pedreiras remontam desde os primórdios da ocupação romana na região; e da exploração de matéria-prima vinda desses túneis que as belas construções da cidade foram erguidas. Mas há alguns séculos que não se abriam novos túneis e aqueles corredores vazios permaneciam um grande depósito de nada. São cerca de 400 km de túneis. Sim, 400. Ao longo dos anos que seguiram a decisão do Conselho de Estado, esse grande vazio no subsolo da cidade foi preenchido com as ossadas dos corpos em decomposição dos grandes cemitérios parisienses.
"As primeiras ossadas transferidas saíram do cemitério Saint-Nicolas-des-Champs após as Catacumbas terem sido abençoadas, em 4 de abril de 1786. [...]Ossos longos, como fêmur e tíbia, foram colocados à frente, formando verdadeiras paredes de ossos, adornadas com os crânios em desenhos geométricos. Por trás dessas paredes de ossos, foram depositados os ossos menores e mais irregulares.”
Fonte: Wikipedia em português.
Estima-se que as catacumbas abrigam os restos mortais de cerca de 6 milhões de pessoas.
Na noite anterior, fui dormir cedo. De banho tomado, mochila pronta encostada na parede. Acordei, enchi duas garrafas d’água e parti para as catacumbas às 6 da manhã. Fui a pé para o endereço das escadas de acesso ao público e chegando lá já tinha uma fila tão comprida que nem dava para enxergar a portaria do lugar. Minha vez de entrar chegou ao meio-dia. Eu estava morrendo de calor e descer míseros 20 metros em direção ao centro da Terra, fazendo a temperatura cair mais de 15 graus de repente, me deixou com a pressão levemente baixa. Segui em frente. E serei eternamente grata ao grupo de turistas argentinos e japoneses que entrou junto comigo, por terem me deixado em paz quando sinalizei que gostaria de fazer a passagem pelas ossadas sozinha.
Dos 400 km de extensão do complexo túnel de catacumbas, apenas um trecho de 1,5 km é aberto ao público. Isso não impede que as pessoas invadam galerias fechadas, façam festas e desfrutem de entradas secretas, que os conectam a antigos casarões, bares e salões de chá espalhados por Paris. No dia em que pus os pés nas catacumbas, li no jornal que dois adolescentes haviam sido resgatados depois de passarem 3 dias perdidos pelos túneis. Com sintomas de hipotermia, foram salvos por um cachorro que os farejou.
As ossadas são empilhadas de forma organizada na maior parte do passeio. Os corredores tem um cheiro muito bom de tempo. O tempo parece um pergaminho feito de folhas de erva doce e rapadura saindo do forno, e à medida que cheira-se o tempo mais e mais, ele impregna a gente por dentro com uma frieza reconfortante. O cheiro do tempo é o cheiro da morte. E aquele sim é o verdadeiro cheiro da morte, porque não há nada mais morto do que corredores de ossos de pessoas que morreram antes de Napoleão ter sequer nascido. Porque não há nada mais morto do que simplesmente não existir, como aquelas pessoas estavam não existindo à minha volta. Nas minhas fantasias sobre as catacumbas, pensei que uma vez lá dentro, talvez me sentisse como uma rainha, na qualidade de ser a exceção entre seis milhões de pessoas; viva, muito viva, tão viva que andaria olhando-as de frente, apenas gozando da minha qualidade de estar viva. Mas qual foi o tamanho do esculacho com que me receberam as ossadas; a minha vida era apenas mais uma, como todas as outras ali. A única diferença entre eu e os ossos era um detalhe do tempo. Uma questão de tempo.
O chão se inclina cada vez mais ao longo do túnel, como se a caminhada tranquila fosse uma marcha silenciosa em direção ao Hades. Pareceu-me irrelevante tirar fotos, acho que tirei apenas duas. No teto baixo há um risco preto que acompanha o percurso todo no primeiro trecho, a marca das chamas que ali arderam num tempo remoto, um tempo sem eletricidade. Como é perene a marca do fogo.
A cada tantos metros, há uma placa que diz algo como “aqui jazem os corpos enterrados no cemitério X entre o ano A e B”. O anonimato trouxe-me um sentimento de paz, um arroubo de vontade de ser eu tão anônima quanto meus iguais ali embaixo da terra. Foi assim que percebi que eu caminhava por uma cova. Uma imensa cova. Eu enterrava-me viva junto ao tempo e de repente enchi-me de amor por todo mundo que dividia a cova comigo. Há de se ter amor pelo anterior antes que se tenha amor pelo próximo.
Emergi por uma rampa luminosa no final do trajeto. O sol machucou meus olhos e senti uma dor estranha, como se estivesse solta demais, longe demais do útero.
Será que é assim que a gente se sente ao emergir pelo buraco do nascimento?
Será que antes de nascer todo mundo é tão morto e tão sereno quanto 6 milhões de humanos descansando em paz juntos numa grande cova?
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Sent from my tamagotchi
Amei o texto! Fiquei me perguntando pq nunca visitei as catacumbas. Essa frase é especialmente boa: “ Há de se ter amor pelo anterior antes que se tenha amor pelo próximo.”
Sempre uma delícia ler teus textos!