Estou no Brasil. Não conseguirei ver todo mundo que eu queria; a pandemia não acabou e eu preciso priorizar algumas coisas por aqui. Mas estou feliz em sentir um pouco de amor com o pouco tempo e as possibilidades de que disponho.
Hoje, faço aqui uma reflexão sobre ressignificar coisas do passado, assistindo o progresso do mundo - a despeito de todas as atrocidades que estamos vivendo.
Onde há arte, há amor.
Onde há amor, há espaço para a mudança.
Atenção: o texto abaixo pode conter erros de digitação e afins.
Tá difícil ser feminista
E houve algum dia em que foi fácil?
Há mais de 10 anos atrás, eu participei da primeira edição da Marcha das Vadias em São Paulo. O protesto passou pela icônica avenida Paulista e terminou na frente do Comedians, clube de comédia de Rafinha Bastos, que na época declarou que mulheres feias mereciam ser estupradas. A TV Folha fez uma reportagem sobre o acontecimento e calhou de eu ser uma das entrevistadas; eles intercalaram um pedaço da minha fala na época com a voz do comediante Danilo Gentili, que era sócio de Bastos no Comedians.
Naquela época, eu era uma jovem mulher que havia descoberto o feminismo através do blog da Lola Aronovich em 2007, e em 2009 eu fazia parte do mítico time das Blogueiras Feministas.
De lá para cá eu já passei por encontros da Frente Nacional Pela Legalização do Aborto, trabalhei para o CFEMEA, colaborei brevemente no projeto Universidade Livre Feminista, ajudei a fundar o MariaLab (coletiva hacker feminista), fui instrutora no RodAda Hacker, participei do Luluzinhacamp, entre outras mil coisas relacionadas ao ativismo feminista. Na vida pessoal, alguns pontos altos na minha trajetória aconteceram quando pude trocar poucas palavras com Susan Faludi, em 2016, e Roxane Gay, em 2018.
Para quem tem quase 15 anos de história acompanhando o movimento feminista, mesmo sem sentir que faz parte ativa da luta, é curioso olhar para suas inúmeras transformações nos últimos anos. É um desafio entender a sensação geral de que está cada vez mais difícil encontrar-se dentro de uma corrente ou alinhamento político dentro do movimento feminista hoje.
Mas será o feminismo apenas sobre isso?
O público & o pessoal: coerência
O que pouca gente sabe é que menos de um mês depois da Marcha das Vadias de 2011, eu voltei ao clube Comedians como espectadora. Não contei para ninguém na época. Talvez por vergonha, medo de ser cancelada — num tempo remoto em que esse termo ainda não era usado, mas o conceito existia — ou apenas por preguiça moral.
Eu recebi a visita de um “peguete” que tinha viajado de Porto Alegre para São Paulo só para gente passar um final de semana juntos. Durante a visita, o rapaz insistiu que queria muito ver o show do Rafinha, de quem ele era fã. Depois de uma breve discussão, acabei cedendo. Pensei que seria menos degradante porque não paguei pelo meu ingresso, mas fiquei chateada exatamente porque não paguei pelo meu ingresso. Aquele feminismo juvenil que bate na bunda, sabe.
Assisti um comediante fazer piadas horrorosas sobre nordestinos; um outro cara falando sobre loiras e mulheres que botam silicone (tem coisa mais manjada que isso?); e, por fim, vi o próprio Rafinha no seu número de stand up, falando que ele era dono do tal clube de comédia e fazendo piadas desconfortáveis sobre isso. Confesso que não foi tão ruim quanto pensei que seria; foi pior.
Ao invés do peguete ter se sentido um merda depois daquilo, quem se sentiu mal fui eu. Ele não entendeu o que eu vi de ruim nas piadas. Afinal, piadas eram só piadas. Não precisavam ganhar o Nobel de Literatura ou terem valor político. (Nem mesmo serem engraçadas, pelo jeito). A pessoa foi incapaz de sacar que meu desapontamento era sobre isso, sobre a falta de talento daqueles homens, sobre o acesso que eles tinham àquele palco só por serem homens (brancos, cis, etc), sobre todo o sistema que permitia o texto ruim daqueles autores ganharem palcos e dinheiro como se pertencessem àquele lugar naturalmente. Por que diabos eu havia me submetido àquela experiência sórdida?
Acredito que esse tipo de contradição é muito mais comum do que imaginamos. É uma espécie de auto-disparate, uma renúncia ao nosso “eu” em prol do coletivo ou da própria busca pela aceitação do outro. Na época, parecia importante ser legal com aquele cara. Ainda que ele conhecesse bem minhas convicções políticas, ele usou meu afeto contra mim mesma. Usou minha consideração por ele para degradar minha moral. Nossas conversas sobre a igualdade dos sexos nunca mais foram as mesmas.
Depois disso, toda vez que eu passava na frente do Comedians, eu lembrava desse dia em que abdiquei de valores pessoais para fazer uma gentileza.
Nunca mais, eu repetia para mim mesma. Nunca mais passo por cima das minhas convicções de novo. Nunca mais piso neste lugar.
Mas na quarta-feira passada, dia 9 de março, voltei ao Comedians.
Sim. 11 anos depois.
Reescrever histórias e lugares
O mundo muda, a gente muda.
Hoje eu não sou mais a jovem que participou de batom vermelho daquela marcha, não leio mais o blog da Lola Aronovich todos os dias e tampouco faço parte direta de qualquer coletivo feminista. Mas também nunca mais passei por cima das minhas convicções por nada nem por ninguém. E continuo estudando e discutindo o feminismo nos espaços que posso.
Uma das grandes mulheres da minha vida é a extraordinária Renata Corrêa. A gente se conheceu nos idos de 2009 pela internet, na lista de discussão de emails das Blogueiras Feministas (assim como tantas outras mulheres incríveis que são grandes responsáveis pela pessoa que me tornei). Além de ser responsável por eu ter virado fã de pizza de abobrinha, a Re é umas das pessoas que mais me estimula a escrever desde que a gente se conhece. E foi por ela que eu pisei de novo no Comedians — agora, Clube Barbixas de Comédia —, para prestigiar um espetáculo de humor. Feito só por mulheres.
Primeiro espetáculo em espaço fechado desde o início da pandemia de covid-19, primeira visita ao Brasil depois de 2 anos e 3 meses, primeiros abraços apertados trocados com as mulheres que mais amo em minha vida. Ressignificar espaços é dar novos nomes a história, mudar o curso das águas da memória. Foi exatamente para isso que pisei de novo naquele clube de comédia.
Não é sobre isso o feminismo?
Extra! Extraordinárias
A Renata é uma das roteiristas do show de humor Extra!Ordinárias, idealizado pela maravilhosa Juliana Mesquita. Jamais haveria um jeito melhor de levantar a poeira daquele palco, que um dia sustentou textos de qualidade duvidosa de homens preguiçosos, da minha memória. O espetáculo tem de tudo, menos piadas lugar-comum, preconceito e preguiça argumentativa.
Extra!Ordinárias traz um texto inteligente e dinâmico que abraça uma improvisação fluida e apoteótica. As esquetes revelam conflitos do drama humano, inseridos em um contexto de cotidiano tipicamente brasileiro. Como uma eloquente cadela de madame que chama a dona de puta o tempo todo; uma visita à cartomante com direito a possessão, encosto e pinga; intervenções divinas no machismo do ambiente de trabalho, e muito mais. Como um bom espetáculo de humor, o texto muda a cada nova performance e dá voz a muitas mulheres.
Junto com a Renata, tem também roteiro de Paula Rocha, Helen Ramos, Tata Lopes, Nathalia Cruz e Luiza Yabrudi. As atrizes também são maravilhosas. Na noite em que eu fui, pude prestigiar Carla Zanini (@carlamzanini), Cecília Villar (@ceciliasvillar), Fafá Rennó (@fafarenno), Tata Lopes (@a_tata_lopes) e Jamile Godoy (@eijamile) — que agora tem o podcast Um show de Jamile.
(Espero não ter esquecido de ninguém!)
Para quem estiver em São Paulo, SP: Vai ficar em cartaz até o fim de março e os ingressos tem preços super acessíveis.
A celebração
Um dos efeitos do isolamento é a preguiça de conhecer gente nova. Mas essa visita ao teatro me revigorou. E conhecer pessoas novas naquele ambiente ostensivamente feminista foi quase como reencontrar um pedaço meu que estava perdido.
Enquanto as mulheres brilhavam no palco, minha irmã estava no hospital, em outra cidade, mandando mensagens em todas as minhas redes sociais para avisar que o mais novo bebê da família estava a caminho — um tanto antes do previsto. Eu estava na presença de mulheres extraordinárias, mas no meu nervosismo, me afastei para falar com minha irmã ao telefone. Muitas mulheres que eu tinha recém conhecido começaram a passar por mim sorrindo, desejando tudo de bom, e eu não entendia o que estava acontecendo. Só depois saquei que aquelas mulheres incríveis do teatro celebravam a vida nova de um bebê que vinha ao mundo. O bebê da minha irmã. Uma mulher que elas nem conheciam. Me parabenizavam porque eu virava tia.
Depois de sobreviver sucessivamente ao fim do mundo por tanto tempo, sobrou-me apenas o essencial. E que felicidade é poder ir atrás de quem realmente importa — e se importa comigo e minhas opiniões de verdade.
Custou-me entender que dessa vez eu não vinha ao Brasil pelo prazer da viagem, pela promiscuidade do carnaval ou pelo prazer da visita e da saudade; eu vinha ao Brasil pelo tesão em estar presente na vida das mulheres que amo.
Não é também sobre isso o feminismo?
Feminismos, no plural
Interseccional, negro, transfeminismo, marxista, yadda yadda. Nunca houveram tantas caixinhas, conflitos e necessidade de falar sobre o tema com mais liberdade. Tá difícil ser feminista, principalmente para quem tá tentando entender o que tudo isso significa agora.
Ser feminista nunca foi fácil. Mas cultivar relações com outras feministas, trazê-las para minha vida como pessoas inteiras, nas suas multitudes e complexidades, sempre foi essencial. Não cria-se vínculo onde o afeto não é recíproco. Como disse Eleonora Duse, onde não puderes amar, não te demores.
Talvez o amor precise ser a base de toda a militância.
Por isso, vou deixar aqui esses 3 links para quem está se sentindo meio perdida.
Feminismo para Quem tá Chegando
Feminismos: algumas verdades inconvenientes
Curso de Formação Feminista da UESB
Eu pensei em incluir perfis de instagram e afins, mas existem coisas que merecem a nossa atenção por mais tempo do que um quadradinho minúsculo numa tela pode oferecer. É legal seguir perfis sobre o tema por aí? Sim, claro que é. Mas não dá para formar nossa opinião baseada em frases curtas de impacto aqui e ali. Coisas tão complexas quanto feminismo merecem leituras e estudos em conjunto.
Quem sabe você chama alguém para assistir um desses cursos gratuitos sobre feminismo com você?
Jabás e recomendações
A Renata Corrêa está lançando um livro de ensaios pela editora Rocco. Monumento para a mulher desconhecida: Ensaios íntimos sobre o feminino. Você pode comprar pela pré-venda na amazon.
O livro será lançado dia 25 de março!
Na linha dos jabás, eu andei falando sobre masculinidade no primeiro livro da série Duna, em um artigo para o site Querido Clássico. Confira aqui o texto Nas areais de Duna: a masculinidade nos Atreides.
E no dia 25 de março (sexta-feira), participo da atividade online Livros Maravilhosos, para falar sobre O manifesto das espécies companheiras, um ensaio de Donna Haraway, com o escritor George Amaral. O evento é uma realização da melhor professora de escrita criativa do planeta, a Ana Rusche. Ingressos aqui pelo Sympla.
E aguardem que vem mais texto sobre Duna esse mês. (Viciada, eu?)
Por hoje é só.
Desculpe a demora.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.