Tá fazendo 30° C hoje aqui em Estocolmo.
É hora de levar um pouco desse calor aí para você.
A ideia de que pessoas normais estão fazendo quartos inteiramente dedicados ao sexo parece apenas mais uma obra do capitalismo tardio. É claro que o movimento seria televisionado - ou “stremeado” - dos Estados Unidos; a nossa querida meca do consumismo. A introdução a esse pequeno mundo de ostentação pessoal, no programa da Netflix “Como criar um quarto do sexo”, é feita por Melanie Rose, uma designer de interiores britânica que viaja pelos USA produzindo quartos de sexo para adultos economicamente estáveis.
Bem naquele clima de reforma em casa, com direito a muitos momentos “antes/depois”, a ideia é reformar um espaço da casa das pessoas para transformá-lo em um quarto do sexo. Teve até um casal que chamou Melanie de “Mary Poppins dos quartos do sexo”.
Será que estamos inventando um novo objeto de consumo?
Talvez a gente esteja apenas assistindo ao nascimento de mais uma maluquice inteiramente humana: um novo cômodo para nossas casas.
Assim como grande parte das famílias indianas tem o puja mandir, um cômodo, armário ou canto da casa dedicado a práticas espirituais, grande parte das casas brasileiras tem uma churrasqueira para o ritual social do churrasco de domingo. Inclusive, um dos comentários mais frequentes que escuto de amigos gringos que estiveram no Brasil é a onipresença dessa churrasqueira, geralmente feita de tijolos no fundo das casas e acompanhada de um espaço para socialização. Por mais que cada casa seja única em seu próprio universo e história, existem elementos de influência cultural que são muito mais fortes do que a gente imagina. As nossas casas são metade cultura e metade intimidade.
As moradias mudam muito dependendo da cidade, do país ou do continente que habitamos. Dependendo até do período histórico em que vivemos. Uma das ocupações humanas mais antigas que se tem notícia mostra que as pessoas já tinham espaços de intimidade semi-individuais milhares de anos atrás; geralmente era o lugar de dormir. Mas os outros “cômodos” pertenciam a muitas pessoas, sendo compartilhados por uma verdadeira comunidade.
“Com a construção das primeiras aldeias, como no caso de Hacılar Höyük, que existiu na península turca por volta de 6000 a.C., a cozinha continuou a funcionar como um espaço comum, juntando-se-lhe os vários pátios entre os edifícios e as muralhas.”
História da Sala de Estar
Enquanto a sala de estar, por exemplo, pode ser considerada um espaço de socialização e diversão coletiva, o quarto do sexo talvez seja só um espaço de diversão íntima.
Não é à toa que o programa da Netflix adapta-se às moradias e necessidades de quem recebe Melanie em casa. O próprio conceito de “casa” é revisitado inúmeras vezes ao longo dos episódios. Por exemplo, quando ela topa fazer um quarto do sexo na casa de um cara que mora sozinho, mas mantém relacionamento firme com outras 6 pessoas, todas se relacionando entre si. Ou quando o quarto do sexo é simplesmente uma van onde mora um casal de mulheres nômades.
Pois é, nem só de casais hetero monogâmicos vive o sexo.
Para quê um quarto do sexo?
De início, eu realmente pensei que lá vinha mais uma invenção excêntrica do consumismo. Mas a cada episódio, eu fui sentindo que o propósito de todo mundo que queria o tal quarto do sexo era estabelecer uma conexão entre tempo e espaço, de um jeito bem literal. Ou entre concreto e abstrato (nem tão literal assim). É uma questão muito pessoal, mas ao mesmo tempo, não é.
Em um mundo que mescla digital com vida real o tempo todo, as pessoas sentem cada vez mais necessidade de traçar limites e estabelecer rotinas. Certo? Tá todo mundo reclamando e comentando disso por aí. Todo mundo chateado com o tempo que passa no Instagram, no TikTok, só passando a telinha para cima. Se não fosse o horário fixo para começar e terminar de trabalhar e os momentos de fazer refeição, por exemplo, talvez a gente simplesmente ficasse preso nesse escapismo visual para sempre. Me parece natural que as pessoas estejam sentindo uma necessidade de estabelecer um horário para ter um momento de intimidade com seus afetos. E dessa ideia de ter horário para transar ou para “explorar a intimidade” é um pulo para criar a necessidade de ter um espaço dedicado a isso.
Como dito antes, o espaço que habitamos muda com influências culturais e com as nossas necessidades íntimas.
É um tom agridoce. Por um lado, tudo o que celebra e estimula a intimidade entre pessoas adultas me parece válido. Sexo é bom, oras. Mas partindo do princípio de que sexo não é apenas um orgão sexual roçando no outro, ou uma boca roçando em um orgão sexual, dá para se questionar algumas coisas. Por exemplo, impôr-se um espaço físico dedicado para o sexo não é também uma forma de limitação?
Do mesmo jeito que a existência da sala de estar não limita a nossa socialização, espero que o quarto do sexo não limite o exercício da sexualidade das pessoas àquele espaço.
Também podemos ver no programa alguns casais hetero-monogâmicos com filhos pequenos, e a necessidade que eles têm de ter um espaço só deles. Um desses casais ganha uma reforma luxuosa no próprio quarto de dormir. Outro casal ganha uma cabana do lado de fora de casa (eles moram em uma fazenda) que vira uma espécie de sex dungeon rural. É interessante ver esse movimento dos adultos tentando se encontrar em um nível mais ousado da intimidade; a maioria deles está tentando até mesmo reencontrar-se. Como uma identidade mesmo.
Na variedade de afetos que expõem a intimidade no “Como criar um quarto do sexo” existe gente querendo só um lugar com privacidade, outros querendo um espaço com móveis elaborados, feitos para estimular eroticamente, e também gente querendo apenas um espaço confortável para se sentir especial. Um espaço que fosse “a cara” das pessoas envolvidas naquela intimidade.
No fim, parece que o sexo nem sempre é só sobre sexo.
O que você faria com um quarto sobrando?
Cerca de um ano atrás, no dia em que encontrei um “quarto sobrando” em casa, eu sentei aqui e comecei a escrever essas newsletters.
Satélite de recomendações
.livro
A estreia da poeta Maiara Gouveia na literatura infanto-juvenil está começando agora, com a editora Urutau. O livro Dobradura está em campanha de pré-venda aqui por este link.
.newsletter
Para resgatar a criatividade e a fome de escrever, indico a newsletter Toranja, projeto da Paula Maia e do Lisandro. Lá, toda semana, você encontra novas propostas de exercícios criativos e chamadas para postagens mostrando o resultado das atividades.
.série
Essa edição da Segredos em Órbita foi toda um convite para você assistir “Como criar um quarto do sexo”, da Netflix. Você não percebeu? Hehe.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
“ As nossas casas são metade cultura e metade intimidade.”
Isso é muito lindo - me fez olhar para o meu redor com olhos novos. Adorei a edição!