Tudo começou porque eu queria falar de um filme do Truffaut. Escrevi por seis horas sem parar; pari dois textos falando sobre culpa. Foi a primeira vez em toda minha vida que escrever me deu dor de cabeça. Em uma outra hora, publicarei esses textos. Mas por hoje…
Preciso desopilar.
Uma vez, quando tinha uns 11 anos de idade, teve um surto de piolhos na escola. Minha mãe achou de bom tom raspar metade do meu cabelo (da nuca para cima), e trançar o resto no topo, usando muito gel de cabelo, para evitar uma infestação. As crianças do colégio acharam meu cabelo novo bizarro e eu, que até então era meio neutra nas hostilidades da turma, virei alvo de piadas. Como meu cabelo já estava raspado e nada eu poderia fazer a respeito, resolvi adotar uma postura meio punk rock. Como se o cabelo raspado fosse uma escolha minha. Eu não escutava punk rock, mas gostava de rock progressivo. O problema é que não tinham camisetas de rock progressivo a venda na época, e me contentei com um par de camisetas de bandas emo que eu mal escutava, mas deram para o gasto. A mensagem estava dada. Depois de um tempo, eu até pegava o skate dos meninos para fazer um grau na frente da escola (não sei porque, mas eu achava que ser punk rocker incluía andar de skate).
Não sei porque estou contando isso. Sabe um desconforto que tenho ultimamente? Não poder andar de calças jeans. Eu amo andar de calças jeans, mas não estou conseguindo porque as minhas não estão fechando na cintura ultimamente. Mas ontem, finalmente, consegui fechar o zíper e o botão em uma delas. Saí bem feliz, com a roupa que eu mais gosto de estar: calça jeans e camiseta preta de banda. Essa sou eu. Algumas horas depois, comecei a me sentir muito mal, porque ficar sentada com aquela calça apertada era dolorido.
Quando voltei para casa, arranquei a roupa do corpo e deitei de calcinha na cama. Levantei, me olhei no espelho. Lá estavam umas estrias que eu nunca tive antes, na barriga. Analisei a possibilidade de cobrir tudo com tatuagem. Eu tenho uma pequena tatuagem num outro canto da barriga, uma letra de música do Daft Punk, embaixo do seio direito. A tatuagem tem quatro dedos de comprimento e doeu demais, demais. É, não vou cobrir as estrias da barriga não. A dor não vale a pena. Eu vou viver com as marcas para sempre, sim.
Não é estranho quando a gente entende que não tem o controle de nada sobre si?
Grande gostosa
Teve um momento da pandemia em que toda a vez que eu reclamava que tinha engordado, meus amigos diziam que eu estava só ficando uma grande gostosa. Eu sei que era um carinho, mas esse termo específico me machucava. De certa forma, eu entendia que as grandes gostosas eram aquelas mulheres de bundas enormes no Instagram, que postavam fotos da sua grandiosidade corpular e beleza infinita, sem se importar com o que pensa a sociedade e tudo o mais. O problema é que eu não me identifico com essa figura que formei na cabeça.
Tem dias que me deparo com meu corpo como se fosse uma figura cartunesca mesmo. Além da bunda enorme, o sutiã sempre estourando. Eu gostaria de ter um daqueles guarda-roupas capsula, com um limitado número de peças, para durar décadas assim, imutável.
Mas meu corpo é mutável; na maior parte do tempo eu tenho peças de roupa que variam entre 4 numerações diferentes. É como se meu corpo abrigasse muitos, ou como se fosse um viajante do tempo, disponível para sofrer as mudanças da minha vida a qualquer momento.
Não quero ser uma grande gostosa. Não quero exergar a obcenidade das minhas curvas, porque não são voluntárias. Talvez seja isso que me agrade em morar aqui numa terra tão distante, tão contida e ao mesmo tempo tão livre: o anonimato do meu corpo. Eu só lembro dessas curvas na solidão do espelho do meu quarto. Mas quando alguém me fala grande gostosa, parece que tomo consciência de algo que não proclamo, algo que não procuro ser. Mas meu corpo involuntariamente me põe nesse papel.
Cansei de ser sexy
Tinha essa banda que acabou muito mal. Lembra? Cansei de ser sexy. Mas a frase ficou. Se bem lembro, foi algo que alguma cantora pop disse em uma entrevista. Não lembro quem.
Eu tenho repensado a questão sobre o que é ser uma pessoa sexy. É uma ideia muito vaga, ao mesmo tempo emblemática. Ser sexy pode significar várias coisas. Esses dias eu vi um vídeo de uma pessoa cortando alho e foi uma das coisas mais sexies que já vi na vida. Parece bizarro, né? Mas não sei, era uma coisa com o mexer das mãos, o jeito de pegar a faca, o carinho com os dentes de alho sobre a superfície de madeira.
O problema de ter peito grande, por exemplo, é que ninguém vai notar minhas mãos cortando o alho.
Isso é uma não-reclamação. É um comentário melancólico. Acho que cansar de ser uma pessoa sexy traz um elemento de repetição à narrativa que se forma quando proferimos a frase. Em algum momento, ser sexy virou cansativo. Por quê? Assédio? Obrigações? Autocontrole?
Não me sinto triste por ter peitos grandes, mas me sinto cansada pela sua presença, que antigamente costumava implicar em uma atenção indesejada. É algo sob o qual eu não tinha controle. E a única narrativa que eu poderia criar era: sim, esses peitões estão mesmo aqui, pode olhar.
Mas eu nunca quis.
Uma das coisas que me prende à vida aqui na Suécia, é o anonimato do meu corpo. É tê-lo absolutamente só para mim e para quem eu convidar.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Sent from my tamagotchi
aiiii, obrigada por esse texto! Me sinto exatamente assim e nunca consegui pôr em palavras <3