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Esses dias uma amiga me contou que não entende como uma pessoa pode escrever ficção. Eu também não sei, mesmo que eu já tenha escrito algumas coisinhas. Fiquei pensando em como acontece esse mecanismo que desperta a criação de algo que simplesmente não existe. Escrever ficção é como sonhar ao contrário. Enquanto o sonho se projeta no inconsciente, quando a mente está quieta e tentando descansar, a ficção se projeta no consciente, em uma mente que está fazendo tudo, menos descansar. No sonho, o cérebro projeta uma coleção de imagens, muitas vezes colocando tudo em uma ordem que nos faz acreditar piamente que aquilo faz sentido. Quando acordamos, recordamos o sonho e chegamos a conclusão que nada faz sentido. Mas algumas vezes faz. Hoje me parece que a internet imita a mecânica do sonho, pois todo momento de ócio faz com que os olhos pousem em um aplicativo qualquer, cuspindo imagens, textos, sons e todo tipo de estímulo bem na nossa cara, sem que a gente tenha qualquer controle sobre o que está entrando na mente. No sonho podem correr dias e dias, mas no fim acordamos para perceber que foram horas, ou até mesmo minutos. Na internet o efeito é contrário, achamos que passou-se quinze minutos, mas o relógio nos conta que foi uma hora. O tempo da internet opera em uma métrica diferente.
Esses dias uma amiga me contou que não entende como uma pessoa pode usar tanto botox. Eu também não sei, mesmo que eu já tenha entendido o mecanismo que desperta a vontade de ter uma boca do tamanho do mundo. Fazer uma intervenção estética é como sonhar ao contrário. Enquanto o sonho projeta uma vontade, um desejo, a intervenção estética projeta a concretude. A cara da pessoa está ali modificada, não há nada mais a se fazer. Sonha-se com o quê depois disso? Com lábios ainda maiores. Mas não me parece uma vontade que brota sozinha no coração das pessoas. A internet guarda uma população de imagens e estímulos que juntos constroem desejos até então ausentes da nossa fantasia. Disparam um senso de normalização, a semente do querer ser igual a todos, de ter aquela aparência, aquela vida, aquele rosto. Desejar o desejo dos outros, tomar para si o desejo de todo mundo. Lábios do tamanho do planeta, uma redoma de pele, a moldura da palavra falada. A intervenção estética é absorver esse sonho. Desejar ser desejável; nem sempre para os outros, mas quase sempre para si mesmo. Suspeito que seja impossível saber quando algo saiu de dentro da gente ou quando saiu do mundo lá fora, uma questão meio quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo? O tempo da internet opera em uma métrica diferente.
Esses dias uma amiga me contou que não entende de poesia. Eu também não, mas gosto muito. Fiquei pensando no mecanismo operando por trás da magia dos versos, que não entendo e ainda sim me enchem a cabeça de emoções, um deslocamento do recheio do coração para cima, para a cabeça. Os miolos pulsando como se bombeassem sangue. O movimento contrário também acontece com seu oposto, a prosa, quando os pensamentos transitam para o coração; poderia ser confuso, mas esse movimento me traz uma clareza impossível de transpor em palavras. Escrever sonhos é contar poesia ao contrário. Não é para entender, é para sentir. A economia de palavras é abundância de sensações. Um texto pode ser muito curto enquanto leio, mas seus efeitos podem durar dias, meses, anos. Pouco importa se estou sentindo o inexplicável lendo palavras em um celular, um computador. O tempo da internet opera em uma métrica diferente.
Esses dias minha amiga não existirá nunca mais, nem eu, nem você. O tempo da internet é um exercício de fé; no instante, agora. Olhe para os lados. Todo esse esforço, todo esse conteúdo. Isso tudo aqui um dia vai ser pó. Mas hoje, hoje não. Hoje a luz da tela, onde teus olhos estão pousados, traduz essas letras em algo que faz sentido, algo que não precisa estar na palma da tua mão para ser real. Não importa se com minhas mãos eu moldei esse texto ontem ou há mil anos, você lê como se eu estivesse escrevendo agora para você. Fico feliz por não ser dependente de papel para fazer durar esse instante entre nós. O tempo da internet opera em uma métrica diferente.
“...meu único medo é morrer amanhã sem ainda ter conhecido eu mesmo — pelo andar da carruagem, eu venho a entender que há um abismo terrível entre mim e os outros [...] se agora eu decidi escrever, é apenas para me apresentar a minha própria sombra [...] porque do tempo em que me isolei dos outros, eu queria conhecer melhor eu mesmo"
The Blind Owl, de Sadegh Hedayat
(tradução minha)
A citação acima vem de um livro iraniano muito bonito. É uma tradução que fiz do inglês, pois infelizmente não sei ler farsi, a língua original do texto. Li para uma disciplina da faculdade em que estou estudando literatura do oriente médio, algo completamente diferente de tudo que já estudei na vida. É bom olhar para a literatura a partir de um mundo estruturalmente todo novo, é como se eu aprendesse uma língua nova mesmo.
O que eu fiz no texto de hoje aqui na newsletter tem a ver com essa aula. Além dos iranianos, estou lendo egípcios e sírios essa semana. Até trechos do Corão eu andei lendo semana passada. Sabe o que está acontecendo? Sinto que estou aprendendo a ler de novo.
É claro que algo disso escorre para a escrita.
Para ler algo diferente: Noir Bagdá
Descobri recentemente a existência da editora Tabla (dica da amiga Iana), que publica obras do oriente médio e norte da África. Traduzem das línguas originais direto para o português — não apenas o cânone, mas também a literatura do povo, das massas e coisas que estão sendo publicadas agora.
Eles estão com uma pré-venda de um livro de contos iraquianos que me deixou interessada. Da newsletter deles, a descrição:
“Bagdá noir faz parte da premiada série de antologia noir da Akashic Books. Uma das cidades do mundo mais devastadas pela guerra entra para a coleção com um volume de histórias sombrias, reunindo 14 contos ambientados em diferentes regiões de Bagdá, que formam um complexo mosaico de experiências e perspectivas.”
Em breve eles terão o ebook disponível para venda também. Por enquanto, a pré-venda é só o livro físico.
Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
P.s: quando sair, vou postar a resposta da carta sobre imigração, da semana passada. Por enquando dá para ter uma palhinha da Lalai no podcast da Gabi Albuquerque.
Se um dia a internet acabar, nada mais disso existir, será que vai ser como despertar de um sonho?
Que felicidade podermos estar juntos — e eu poder te ler — nesse tempo-(espaço) que opera numa métrica diferente. Amei a edição de hoje!