Autoteoria: a arte de elaborar a si mesmo
A prática de usar a própria vida para teorizar o mundo
Essa é uma edição especial de carnaval! Leia o texto de abertura abaixo e depois descubra o que diabos é autoteoria.
Se eu tivesse ido embora
Será que sou uma mulher rancorosa? Mesquinha? Quando eu olho com recalque pela janela do ônibus, vejo crianças de uniforme escolar descendo dos carros, e então invejo pessoas do passado, que usaram aqueles mesmos uniformes há 20 anos e tiveram acesso às coisas que eu não tive. Desde o pessoal daquelas escolas maristas, ou qualquer escola particular bem boa, até as mulheres que um dia foram meninas com dinheiro para estudar na Cultura Inglesa, no Yázigi ou sei lá de onde elas saíam fluentes em inglês. Quando moça, tive inveja de tudo, mas nunca disse nada. Dos laboratórios de biologia bem equipados e dos computadores brancos até dos professores sorridentes. Penso no que eu poderia ter aprendido se tivesse acesso a esses recursos. Talvez eu tivesse sido outra pessoa, talvez tivesse ido mais longe. Esse “longe” dolorido demais, distante demais, abstrato demais. Eu teria ido longe. A vida passa pela janela, o ônibus é engolido por um túnel, como uma criança descendo por dentro do corpo da mãe até encontrar o buraco de saída, lá onde a buceta se abre para o mundo. O ponto de destino se aproxima, eu aperto a campainha e me levanto. A porta do ônibus abre e o bafo de calor sopra um lembrete: faz 39 graus lá fora. Gostaria de morar em um lugar menos quente.
Gostaria de ter estudado Letras e de ter falado línguas. Talvez fosse mais feliz se fosse uma daquelas garotas franzinas, de óculos de aro grosso, um ar natural de professorinhas. Baixinhas. Tu és um mulherão, me disseram várias vezes ao longo da vida — e me encolhi automaticamente todas as vezes. Gostaria de ser menorzinha, de aparecer menos. Ser capaz de regular o quanto sou visível e de vez em quando sumir do mapa. Gostaria de ser uma mulher bem pequena. Às vezes até invísivel. Fisicamente falando. Parece que tudo o que é grande é obsceno.
Quando foi que minha inveja dos homens tornou-se inveja das mulheres? Talvez tenha sido no verão de 2011 quando tive a oportunidade de ir embora, mas fiquei. E comigo ficou uma dúvida sobre quem eu poderia ter sido se tivesse ido embora. Se tivesse partido, teria segurado o medo dentro da boca, como quem segura o vômito na força da vergonha. Humilhada, porém firme. Mas o medo foi maior, incontrolável. Esse medo do novo, de não conseguir dar conta do desconhecido. Medo de ir embora da cidade natal e deixar para trás tudo o que eu conheço.
Desço do ônibus em frente ao Instituto de Educação. Nada mudou, tudo mudou. A escola estadual onde estudei quase a vida toda permanece existindo desde 1869, imutável. Imutável? A tinta nova da reforma cobre as colunas de concreto que imitam o estilo jônico daquelas de mármore grego em que foram inspiradas. Em volta da escola há uma grade de ferro que não havia nos meus tempos de estudante. Nem mesmo os prédios permanecem os mesmos.
Caminho pela calçada com a mão segurando a alça da bolsa e os pés enfiados num par de tênis velho, porém confortável. As árvores do parque da Redenção são exatamente as mesmas, mas eu não me dou conta disso. A beleza da sua permanência, a torção perfeita dos troncos e o conforto que meus olhos encontram em suas formas familiares são ignorados pelas emoções do dia a dia. Estou obcecada pela ideia de quem eu teria sido longe dali, longe dos meus, em algum lugar distante. Qualquer lugar desde que fosse longe.
Eu poderia ter ido longe.
Em algum momento do tempo-espaço agora, uma versão paralela de mim mesma foi embora naquele verão de 2011 e se pergunta: quem eu teria sido se tivesse ficado?
Atenção
O texto acima é uma ficção.
Será?
Autoteoria
A autoteoria é a prática de usar a própria vida para teorizar o mundo a nossa volta. Pode parecer um papinho mole de mulher branca que quer escrever bloguinho na internet naquele clima “ó leitor, veja como é interessante minha vida super desinteressante”. Mas a autoteoria tem uma base descolonial e queer.
A autora Lauren Fournier, que pesquisa autoteoria como prática feminista, fala que há uma espécie de “impulso autoteórico” nessa tendência em misturar arte com filosofia hoje em dia. Veja aí a crônica e o ensaio, por exemplo. Isso é, o impulso autoteórico está aí para dar sentido às nossas ideias e emoções de um jeito muito parecido com o estudo acadêmico. Mas enquanto na academia a gente precisa firmar nossas teorias em escritos anteriores, majoritariamente criados por homens brancos e habitantes de países colonizadores, a autoteoria permite que a gente use bases menos ortodoxas para elaborar novas ideias. Isso faz da autoteoria uma expressão essencialmente descolonial, pois não apoia-se exatamente na tradição colonialista da academia para validar a construção de novos pensamentos e conceitos.
Eu comecei a ler sobre autoteoria ano passado, quando passei a pensar mais sobre a popularidade das newsletters aqui no substack. Eu comparava o modo com que escrevemos nesses espaços hoje com o jeito que fazíamos blogs nos anos 2000. Muita coisa mudou de lá para cá e eu precisava de um alicerce para firmar minhas obsrvaçoes - e teorias - sobre o que anda acontecendo.
Espere ler mais sobre o assunto por aqui em 2023. Não tem quase literatura sobre isso em português ainda, mas vou tentar trazer algumas coisas para vocês.
CarNEWSval
Há umas semanas o Thiago fez a proposta de uma brincadeira de carnaval entre newsletters. A ideia era postar um texto fantasiado de alguma coisa - ou seja, incorporando um personagem. Eu sou escritora de ficção e acostumada a escrever na voz de criaturas fantásticas, vampiros, bruxas etc. Mas não gosto de publicar textos ficcionais aqui na newsletter. Então, pensei em um exercício mais autoficcional como um desafio.
Para quem não sabe, eu sou uma gaúcha trintona que não mora no Rio Grande do Sul há 12 anos. Estou visitando Porto Alegre em fevereiro e toda vez que venho para cá fico me perguntando quem eu seria se nunca tivesse ido embora. Quem eu teria me tornado, quais amigos permaneceriam meus amigos, quem seria amigo novo, onde eu estaria morando, trabalhando, com quem eu estaria ficando, namorando, sei lá. Quais seriam meus medos, anseios, do que eu teria mágoa, o que me faria feliz… Essas coisas.
Então escrevi o texto que abre essa edição em um exercício de pensar quem seria eu hoje se nunca tivesse partido.
Satélite de Recomendações
Outras newsletters participaram do bloquinho do Carnewsval do Thiago. Fique com esses textos animados para curtir o carnaval ;)
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Eu amei demais conhecer esse conceito da autoteoria, achei chic, desruptivo e super a minha cara. <3 Obrigada por me ensinar mais uma coisa.
E adorei seu texto! Escrevi algo parecido depois de uma viagem a Maceió - o lugar que fui embora em 2003. Vou te mandar no grupo.
beijocas
Ah os famosos “e se...?”, matérias-primas, terreno fértil e semente pujante de tantas ficções e neuras... Com o tempo fui desenvolvendo uma estratégia para lidar com os meus: se não foi escolha minha, o “se” nunca existiu; se foi escolha minha, meto um jogo do contente de “que massa que pude escolher”. Funciona? Não. Tá tudo aqui ainda: ficções e neuras.
Impossível não lembrar do maravilhoso “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, onde o exercício do “e se...?” foi levado ao extremo.
Sobre a autoteoria, me causa um certo estranhamento/incômodo, confesso. Talvez por eu vir das ciências naturais? Mas de qualquer forma, um sinal que preciso entender melhor, porque onde incomoda é bom cutucar. Ansioso pelos próximos textos!