3 maneiras de lidar com medo 🗡️✨
Mulheres, não-mulheres, coragem e questões filosóficas demais para caber em uma frase de efeito
Nota: Chegaram mais de 150 pessoas novas aqui desde a última edição. É um prazer enorme ter acesso a tanta gente através da palavra. Quero só agradecer, não só a esses novos, mas principalmente a quem já está comigo há meses ou anos, por confiarem em mim e continuarem aqui. Essa newsletter só existe porque há leitores aí do outro lado. Com vocês, eu não me sinto sozinha. Com vocês, eu me movimento. Vamos juntos.
3 maneiras de lidar com o medo
1) Não alimente o medo. Se há uma única coisa a se dizer, é isso. Não alimente o medo. Como diriam as bene gesserit, as bruxas-geneticistas de Duna, o medo é o assassino da mente1. Veja que não é questão de ignorar a existência do medo, é só questão de não fazê-lo maior do que ele já é. Isso me faz pensar direto em sobre como é difícil fazer algo pela primeira vez. Pois fazer algo pela primeira vez implica em estar disposta a duas coisas: a) passar ridículo e b) sentir medo. Os dois são parte do mesmo processo, o risco. O risco de passar ridículo só é superado se você não sabe que está passando ridículo, assim como o medo só é superado quando você não sente medo. Duas coisas que tem tudo a ver com consciência. Presença. E é por isso que associam o risco a figuras masculinas, pois mulheres costumam ter muita consciência de si e do espaço ao seu redor — já estamos todos cansados de saber que se qualquer coisa acontece com elas na rua, as autoridades vão primeiro questionar porque elas estão na rua, o que elas estavam fazendo na rua e qual a roupa elas estavam vestindo etc etc etc. Para mulheres, avaliar riscos é uma questão de sobrevivência. Por isso elas tendem a se arriscar menos. Será mesmo? Se sair na rua já é um risco para qualquer mulher, não seriam elas as criaturas mais destemidas? Mais bravas? Viver, meus caros, já é arriscado demais. Ainda sim… Aqui estamos. Mulheres são especialistas em fazer as coisas com medo, porque se deixarem o medo comandar seus passos inteiramente, elas estariam até hoje sujeitas a falácia da fragilidade do gênero. O medo é o assassino da mente. A mente é a barra de contenção do instinto, esse selvagem, nascido do coração. A mente planeja o próximo passo que o coração quer dar no impulso. O medo faz o animal assustado atacar de qualquer jeito e a mulher a trancar-se em casa. Sem pensar. Não alimente o medo a ponto de faze-lo crescer, mas também não o mate de inanição. Mantenha-o pequeno, mas mantenha-o por perto. Aprisionado, louco, mas vivo. Se o medo é o assassino da mente, ante seu desaparecimento, outro assassino virá.
2) Use o medo como estratégia. Escute seu medo, pois ele diz exatamente qual é o seu lugar no hemisfério do mundo. Há jeitos de transformar o medo em coragem, mas na maior parte das vezes o que as pessoas chamam de coragem é sobrevivência pura. Paul B. Preciado, uma pessoa não-mulher, que conhece bem as dinâmicas de opressão às minorias, fala disso de maneira categórica quando lhe pedem que fale da coragem, da coragem para ser queer, transicionar, ir e voltar, “coragem de ser quem a gente é” como as marcas e influencers gostam de lembrar de maneira tão boba e leviana — um discurso que sozinho não quer dizer nada. A resposta de Paul é franca. “Guardem a coragem para vocês. Para seus casamentos e seus divórcios, para suas infidelidades e mentiras, para suas famílias e suas maternidades, para seus filhos e sua herança. Guardem a coragem que é necessária para manter a norma.”2 Nós não precisamos de coragem, nós precisamos de estratégia. Escutar o medo é entender a origem das ameaças. Nós, que não temos coragem, mas estar em risco é a nossa condição de existência. Precisamos ser cuidadosos ao redor desse risco, precisamos planejar o que fazer caso dê merda. Estratégia.
3) Imagine como a vida seria sem esse medo. O medo torna-se assassino quando nos leva a paralisia. O remédio para a paralisia é o movimento. Social, físico, mental. Principalmente o mental, pois é na cabeça que a semente primeiro cai. A imaginação é a assassina do medo. À vezes a falta de prática faz parecer que carecemos de imaginação, mas há de se usar o poder de inventar para enxergar o limite das coisas. Criar um mundo novo, uma hipótese, uma teoria, como se não houvesse nada nos impedindo, é também deixar o mundo antigo para trás. Ao mesmo tempo, perder o que conhecemos é assustador. E criar é dolorido, mas necessário. Como disse Ursula Leguin, bruxa das palavras, “para encontrar um novo mundo, talvez você tenha que ter perdido um. Talvez você tenha que estar perdido. A dança da renovação, a dança que fez o mundo, foi sempre dançada aqui, no limite das coisas, na beira, na praia nublada”3. Gosto da imagem do litoral enevoado, da praia envolvida em neblina, misteriosa, recheada de algo invisível. Imaginar é ir em direção a essa neblina. Baixar a bola, respirar, pois sonhar leva tempo. O coração destemido leva tempo. A mente destemida é uma coleção de universos únicos.
A imaginação é a assassina do medo.
Essas palavras podem parecer um recado ou uma coisa nova, mas não são. Todas nós sabemos dessas 3 lições, de outra maneira nenhuma de nós teria chegado até aqui. Amanhã é dia internacional da mulher, você já deve ter visto os sinais. Se há uma única coisa que eu consigo encontrar em comum na experiência de todas as pessoas que se identificam com o gênero “mulher” é a onipresença do medo em nossas vidas. Não existe nada em comum entre nós todas além disso. E não houve um dia nesses anos todos de vida em que eu não tivesse uma parente, amiga, colega de aula ou de trabalho, que não estivesse sofrendo pelo medo. De atravessar, de desabrochar, de sair, de entrar, de ir atrás. De se movimentar. De partir. De voltar.
Seguimos.
É um clichê, mas quem estava precisando ler esse pequeno texto era eu.
Três anos. Foi em março de 2021, parece ontem, eu descobri que tinha mais medo de um mundo onde eu não pudesse escrever do que medo de escrever. Eu escrevia “só para mim”, mas na real era só um grande medo do desconhecido. De ser ignorada, de passar ridículo. Eu fui fazendo um exercício de esvaziar o medo de sentido, fui reduzindo-o até que ele ficasse pequeno demais para paralisar, mas grande o suficiente para proteger as pessoas que eu amo. Então eu me permiti idealizar um lugar onde eu pudesse compartilhar as coisas que o medo antes não deixava. O que eu faria se não tivesse medo de me expor?
Cinco meses depois essa newsletter estava no ar (essa foi a primeira edição).
Na época eu sonhei em um dia talvez juntar mil leitores – parecia um delírio. Era uma ousadia enorme para uma mulher totalmente desconhecida na internet. Como fazer a palavra rodar só pela palavra? Sem expor meu rosto, sem fazer vídeo? Como falar sobre meu corpo com honestidade sem precisar exibi-lo para que as pessoas de identifiquem com as minhas inseguranças? Como falar sobre trabalho e burnout sem reclamar de ninguém diretamente? Como falar sobre relacionamentos, traumas e questões de família sem expor aqueles que eu amo? Eu descobri tudo isso aqui. Na troca com vocês.
Escrever parece ser algo muito solitário, mas não é. Do zero aos mais de 4000 mil leitores foram muitos medos. Toda vez que eu sento para escrever uma edição nova, eu me sinto bem porque vocês estão aqui comigo. Eu gosto de retribuir a companhia. E esse projeto só continua existindo porque vocês estão aqui.
Eu tenho medo de não ter mais tempo para escrever, mas não só isso. Para pensar também. Hoje eu criei uma campanha na plataforma Apoia.se para estreitar essa relação com quem me lê.
Eu quero ficar mais perto de vocês. E foi por isso que demorei tanto tempo para lançar a campanha – porque eu tenho medo de fracassar. Mas o que significa fracassar? Eu não sei. Também não sei o que significa o sucesso. Assim, de uma maneira prática. Mas estou disposta a me jogar nesse desconhecido e descobrir como lidar com mais um medo. Como tenho feito nesses quase três anos aqui com vocês.
Vamos lá?
A partir de hoje, vocês podem contar com novos projetos da Segredos em Órbita. Eu quero que meus leitores se encontrem. Quero que as pessoas saibam que lá do outro lado da tela tem mais gente interessada nos mesmos temas e compartilha das mesmas vulnerabilidades. Por isso eu abri uma campanha recorrente no Apoia.se onde uma das recompensas é um clube de leitura mensal.
Crônicas em Órbita. Para gente discutir crônicas, ensaios e newsletters de escritores contemporâneos e cronistas clássicos. Toda primeira terça-feira do mês, às 19h (horário de Brasília). Saiba mais aqui.
Além do clube de leitura, há outras 2 recompensas. Uma delas envolve um presente físico. E outra envolve a produção de um livro. Entra lá no Apoia.se para conhecer. (Também vai ter oficina de escrita novíssima, voltada para newsletters, entra aqui para conferir.)
Conto com vocês para gente continuar esse caminho juntos.
obs: O querido Rodrigo Ghedin atualizou o diretório de newsletters do Manual do Usuário. Se você quer conhecer novas publicações, dá um pulo lá.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Do livro Um apartamento em Urano.
Tradução minha de um trecho de Dancing at the edge of the world.
Que texto perfeito e com um olhar inovador e fresco sobre um assunto tão presente no nosso dia a dia. Para mim caiu como uma luva - estou vivendo a minha 3a gestação depois de 2 perdas anteriores extremamente dolorosas.. e tendo como maior desafio o medo! Obrigada por esse texto. Deixei salvo aqui para reler várias vezes.
E PS: obrigada também pelo final dele, por compartilhar teus medos na trajetória de escritora. Comecei a minha news ano passado (justamente pra falar dos meus medos, dores e lutas) e saber mais de “quem chegou lá” é inspirador.
Nossa, que porrada no bom sentido. Paul B. Preciado disse bem, assim como você. Parabéns pela franqueza. As suas últimas newsletters tem ressoado bastante comigo.