No primeiro mês morando em Estocolmo, eu criei uma brincadeira simples para conhecer a cidade. Entrava na estação de metrô mais próxima de casa, procurava o mapa das linhas, fechava os olhos e pousava o dedo em um ponto aleatório do mapa. Era assim que eu escolhia para onde eu iria naquele dia. Às vezes eu selecionava de um jeito menos arbitrário: procurava pelo nome da estação mais esquisito ou impossível de pronunciar. O objetivo era só ir até lá e dar uma caminhada pelo lugar desconhecido. Às vezes eu ficava uma hora andando à esmo pela região e depois seguia para um lugar familiar, outras vezes eu passava o dia vagando pelo bairro novo, e houve vezes em que acabei voltando para casa a pé ou de bicicleta alugada, descobrindo conexões e caminhos ainda inexplorados.
Situacionismo e deriva
Eu não sabia ainda, mas estava praticando psicogeografia. A psicogeografia é uma neta do marxismo, inventada pelo Guy Debord, o cara que escreveu A sociedade do espetáculo. É um termo que descreve um modo de explorar uma região urbana pelo viés da emoção e dos nossos sentimentos sobre o lugar, ao invés da lógica utilitária pela qual nos deslocamos pelos lugares. Uns anos atrás, quando lançaram o jogo Pokemon Go, pipocaram alguns artigos relacionando-o com esse termo nascido dos grupos revolucionários europeus do final da década de 1950. A Internacional Situacionista era uma organização criada por intelectuais avant-garde e artistas que procuravam pensar sobre as estruturas da sociedade em um ambiente de capitalismo avançado. Foi daí que surgiu o termo deriva e psicogeografia.
“...a deriva se apresenta como uma técnica ininterrupta através de diversos ambientes. O conceito de deriva está ligado indissoluvelmente ao reconhecimento de efeitos da natureza psicogeográfica, e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que se opõe em todos os aspectos às noções clássicas de viagem e passeio. […] o caráter principalmente urbano da deriva, em contato com os centros de possibilidade e de significação que são as grandes cidades transformadas pela indústria, respondem melhor a frase de Marx: ‘Os homens não podem ver ao seu redor mais que seu rosto; tudo lhes fala de si mesmo. Até suas paisagens estão animadas’”.
Teoria da Deriva, de Guy Debord. 1958.
Os centros urbanos são geralmente construídos em estruturas de moradia, comércio, indústria e lazer. Assim, a distribuição dos espaços urbanos acaba sendo uma história viva de como as cidades são formadas. Mas quem define essa história geográfica das cidades? Quem diz onde e como o espaço é organizado? Nós vivemos o urbanismo no dia a dia de uma forma muito direta: o deslocamento é puramente utilitário, para levar nosso corpo de um ponto A a um ponto B, assim como os lugares de onde saímos e para onde vamos; cada um tem um propósito claro. O pessoal da Internacional Situacionista propõe pensar as cidades por novas lógicas, como um meio de se libertar das amarras do ideal capitalista na qual elas são construídas.
No livro A cidade e a cidade, do escritor inglês China Miéville, conhecemos um espaço urbano único onde duas cidades diferentes vivem simultaneamente ocupando as mesmas ruas e calçadas. Beszel e Ul Quoma são o palco de um crime, onde um investigador vai nos mostrar pela narrativa como as duas cidades, falando até idiomas diferentes, convivem no mesmo espaço onde os cidadãos aprendem a não enxergar os habitantes da outra cidade. O livro é considerado uma ficção científica, do subgênero weird.
Mas se a gente pensar um pouco, talvez dê para sacar que mesmo no contexto da realidade em que vivemos, as populações de grandes cidades hoje, em qualquer lugar do mundo, costumam habitar universos paralelos ainda que dividam o mesmo território geográfico. Como exemplo, trago um trecho do livro de crônicas Mas em que mundo tu vive?, do gaúcho José Falero.
“Será que todo mundo sai por aí olhando os viaduto da cidade e considerando a possibilidade de um dia morar embaixo deles, pensando nas vantagem e desvantagem de morar embaixo dum ou embaixo doutro? […] Esses cara tudo que tá morando na rua não é tão diferente assim de ti. Né? É uma realidade próxima da tua realidade, colada na tua realidade. […] Tu quer fazer letras na UFRGS um dia, não quer? Mas a verdade é que tu conhece mais morador de rua igual a ti do que gente formada em letras igual a ti.”
Cidades são lugares onde tudo pode acontecer. Elas podem ser espaços de opressão e liberdade, tristeza e alegria, paixão e desencantamento. Podemos vê-las como organismos vivos e pulsantes, com vida própria e mentalidade distinta uma da outra.
Fantasismo
Quando escrevi minha história de estreia, Suor e Silício na Terra da Garoa, tentei imaginar São Paulo no Brasil de 2070. Pensando na luta de classes, escolhi ir na direção contrária da maioria das narrativas cyberpunks que eu conhecia. Nesse universo, escolhi colocar a elite brasileira em casas no solo – para mim, faz sentido ver gente rica morando em mansões – e a classe trabalhadora espremida em arranha-céus altíssimos. É muito mais fácil controlar pessoas em ambientes fechados e limitados do que no mundo lá fora. No contexto que criei para a história, poder andar pelas ruas de uma cidade (ou seja, ter permissão para sair de dentro dos arranha-céus) é um luxo.
Cidades fictícias são, assim como a prática da psicogeografia, instrumentos poderosos para fazer a gente repensar o mundo que habitamos. A literatura e o pensamento crítico são ferramentas revolucionárias.
Eu também não sabia quando estava criando a minha história, mas escrever ficção científica hoje no Brasil pode significar fazer parte do mais novo movimento literário do nosso país: o fantasismo. Nas palavras dos professores Bruno Anselmi Matangrano (USP) e Enéias Tavares (UFSM), no livro Fantástico Brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo:
“O fantasismo é um novo movimento literário cuja origem parece coincidir com o novo século, mas, sobretudo, a partir de 2010, quando o mercado de literatura brasileira começa a se estruturar de fato […] o fantasismo recupera fortemente o aspecto antropofágico da literatura modernista brasileira e o aplica a sua própria categoria, em um esforço louvável de abrasileirar, aclimatar e conferir cor local a modos narrativos importados, distanciando-se de suas matrizes. É graças a esse processo que temos uma cidade steampunk como a Porto Alegre dos Amantes de A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison em oposição às constantes histórias retrofuturistas passadas em Londres […] Com isso não se pretende mostrar que o fantasismo brasileiro seria uma literatura que copia moldes estrangeiros, com imitações aclimatadas. Ao contrário, nosso objetivo é apresentar uma literatura que sabe trabalhar suas referências, tanto nacionais como estrangeiras, em continuidade a toda uma tradição, brasileiríssima em essência, que remonta o romantismo e toda a nossa história literária subsequente […] trata-se, pois, de uma liteatura que teve tempo de amadurecer em um longo processo marcado por preconceito, descaso e despeito, mas que, ao fim e ao cabo, conseguiu conquistar seu lugar ao sol.”
E segue conquistando.
Foi nessa pegada de profissionalização do gênero insólito (o combo fantasia, ficção científica e horror) que eu e um grupo de amigos escritores criamos a Eita! Magazine em 2020. Com o propósito de exportar as histórias do fantasismo brasileiro para o exterior, nós criamos uma revista de contos fantásticos, de autores brasileiros, em português e inglês.
A quarta edição da Eita! (tá escrito 003 na capa porque começamos contando do zero) recebeu centenas de contos de autores que escreveram as histórias mais malucas e incríveis sobre: CIDADES. Nossa equipe é minúscula e a revista funciona a base de financiamento coletivo, então conseguimos dar conta de editar, preparar e traduzir um número limitado de histórias. A revista saiu com cinco contos inéditos e uma história do conhecido Aluísio Azevedo.
Eu estou feliz demais de ver mais uma edição acontecendo e adoraria ver mais gente conhecendo as mais novas cidades da literatura fantástica brasileira.
Eita! Cidades
Quem apoiou a campanha do Catarse deve ter recebido a revista (as outras recompensas, como os serviços editoriais, ainda estão sendo distribuídas), mas quem não apoiou pode ler na Amazon.
Essa edição tem histórias inéditas de autores do Goiás, Ceará, Espírito Santo e Rio.
*As ilustrações dessa edição são do Ian Santos, artista de Belém, Pará.
As vendas da revista pelo botão acima vão fazer a próxima edição possível - nossa equipe de editores e tradutores é voluntária (às vezes conseguimos fazer um pagamento simbólico, mas nem sempre), porém os autores e ilustradores são remunerados. É importante para nós valorizar o trabalho de quem cria. E o dinheiro arrecadado da revista é que proporciona isso.
Para conhecer mais da Eita, veja nossas redes: Twitter e Instagram. No nosso site dá para encontrar as edições anteriores.
E para nos apoiar de outras formas, é só entrar no Patreon. Ou ficar de olho no Catarse.
Obs: Nesse link dá para ver o processo de produção da capa da Eita! Cidades.
Eu sei que costumo escrever reflexões mais profundas sobre os temas da newsletter, mas a edição de hoje foi digitada um pouco na pressa. Estou nas semanas de final de semestre por aqui, mas os temas que abriram o texto hoje me interessam muito. Tenho alguns projetos pessoais sobre práticas de psicogeografia - nada formal ou acadêmico, coisa minha mesmo -, tô sempre lendo sobre o tema da deriva. Mas não sei se faz sentido trazer para cá 🤔
Bem, por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Lembrei de um livro que gosto muito, também sobre cidades, mas de uma perspectiva diferente, “Diários de bicicleta”, do David Byrne. Não sei se já leu, mas recomendo.
Belo texto! Adoro sair sem rumo por aí. Lembrei do geógrafo Yi-Fu Tuan, que escreve coisas que, à primeira vista, não parecem ser estritamente Geografia. Em seu livro "Escapism", ele fala que o termo "escapismo" (desejo de escapar, sair por aí, de diversas formas) nos ajuda a pensar sobre natureza vs. cultura; quem somos vs. quem gostaríamos de ser; real vs. imaginado; realidade vs. fantasia. Parece ter a ver com a proposta da Eita!, que estou curiosa para espiar. Parabéns pela quarta edição! 😊😘