Aviso inofensivo: Por razões de crise climática, no mês de maio essa newsletter não está seguindo o calendário padrão de mandar textos apenas às quintas-feiras. Estamos operando no improviso, no desabafo e na necessidade.
Os adolescentes gaúchos desabrigados estão curtindo as roupas de marca que recebem das doações. Eu entendo, eu faria a mesma coisa. Tem gente comentando que está se vestindo melhor do que antes. Eu dou risada, volto ao passado. A gente é pobre, mas se diverte, visualizo minha prima rindo sem os dentes da frente, repetindo essa frase para o meu eu-de-oito-anos, na casinha de madeira nos fundos do quintal da zona sul de Porto Alegre, direto dos anos noventa. Me fascinava os olhos azuis brilhantes dessa prima e a contraposição com a falta de dentes — uma das minhas tias dizia que isso era para gente entender que pobreza não escolhe cores. Mas se olhar para as estatísticas, sabemos que escolhe sim.
Uma das maiores angústias em ser pobre é entender que você poderia ser uma pessoa completamente diferente se tivesse acesso ao que aquelas outras pessoas tem. Não no sentido de posses, mas de acesso mesmo. De alcançar coisas, de desfrutar de certas tranquilidades. A diferença de classes provoca essa diferença de acessos; a lugares, comidas, experiências, conhecimentos. Só quem nasceu em família simples e foi o primeiro a pegar um avião sabe o quão custoso é transitar num ambiente como o aeroporto sem entender exatamente como as coisas funcionam. Só para citar um exemplo banal. A gente não se torna apenas fluente em línguas, mas em lugares. O jeito como as pessoas se deslocam de um espaço a outro, os lugares onde elas se movimentam sem precisar pensar muito, as linguagens nos gestos, no caminhar, são jeitos de existir profundamente ligados a nossa posição na sociedade. São limites e códigos de pertencimento. Esses limites invisíveis estão enraizados no seio das cidades grandes e pequenas.
No livro A cidade e a cidade, do inglês China Miéville, nós acompanhamos uma história de investigação de um assassinato que acontece em um território geográfico que abriga duas cidades no mesmo lugar. São ruas inteiras, prédios, pessoas e carros que funcionam em ordens distintas, falando línguas distintas e fingindo que “o outro lado” não existe. Até as leis são distintas, pois pertencem a dois países diferentes. Cidadãos são treinados desde pequenos a desver os símbolos e pessoas da outra cidade até que tudo pertencente aos outros se torna invisível. Muitas análises desse livro começam colocando-o como uma crítica ao modo como vivemos nossas cidades hoje, desvendo a pobreza e a miséria, pois somos treinados a virar para o lado ao encontrar a desgraça do outro.
Me pergunto o que aconteceria a Beszel e Ul Qoma, as cidades gêmeas do livro, se fossem invadidas por uma enchente.
Hoje, no Rio Grande do Sul, temos um vislumbre disso.
Mesmo que a enchente esteja atingindo classes sociais de modos diferentes, ainda sim, todo mundo está sofrendo com ela de alguma maneira. Esse sofrimento mobiliza as pessoas. Quando assisti às imagens da passarela da rodoviária sendo quebrada para permitir a passagem de caminhões em uma estrada de pedregulhos e terra, construída às pressas no meio da água no centro de Porto Alegre, alguma coisa aqui dentro se quebrou também. Além dos estragos materiais, a cidade sofre com um estrago simbólico. Quase todos os símbolos de identificação imediata não só da capital, mas do estado inteiro, foram atingidos e estão… diferentes. E arrisco dizer que nunca mais serão os mesmos. Até a marca que a água vai deixar é um símbolo de transformação. Nos próximos anos, os mapas devem mudar seu desenho.
O capitalismo não está colapsando.
Mas nós estamos.
Fazemos o que podemos. Para não dizer que deixei de falar sobre as grandes doses de esperança, no último sábado aconteceu um aulão beneficiente de escrita criativa, cujo valor arrecadado está sendo convertido em doações para organizações que estão cuidando dos desabrigados no RS. Batemos mais de 32 mil reais. Quem diria?
Muita gente me escreveu para agradecer por ter organizado o aulão. Eu entendo que ele foi útil tanto quem comprou ingresso e assistiu à aula, quanto para os 16 escritores que doaram seu tempo (e muitos deles dinheiro também) à causa. Eu confesso que sabia que o aulão seria muito bom, mas ele superou todas as minhas expectativas em conteúdo. Aprendi coisas novas com cada uma das apresentações e não estou exagerando.
Mas vamos precisar de muitos aulões beneficentes daqui para frente.
Se você tem interesse em participar, responda a esse formulário.
Para quem quiser acessar o aulão gravado, estou providenciando. Espero resolver a parte burocŕatica logo. Assim que rolar, eu aviso por aqui e pelas redes.
Ano passado eu escrevi um livro inteiro sobre Porto Alegre. É ficção, uma história em linguagem experimental que se passa no decorrer de um dia. Essa é uma história curtinha, coisa de quase 100 páginas, o que fora do Brasil o pessoal chama de noveleta. Não gosto de contar sobre livros ainda não publicados, mas a enchente me levantou uma questão.
O livro se chama Paralelo 30. Ele morou na minha cabeça com esse título por uns dez anos. Até eu conseguir parir sua primeira versão em um arroubo de loucura em uma semana — mas estou há meses editando-o.
Se eu publicasse esse livro de forma independente e convertesse o valor em doações para o RS até o fim do ano, vocês comprariam? Dado a situação do momento, só posso oferecer o livro em formato digital — a não ser que alguma editora ou gráfica no Brasil se disponha a fazer a mão de publicar e distribuir cópias físicas para quem quiser.
Vou decidir com base nessa enquente:
No mais, agradecimentos para vida inteira a todos os escritores que responderam ao meu chamado rapidamente na segunda-feira passada. Quando precisarem de mim, vocês sabem aonde me procurar.
Queria mandar um agradecimento a mais para a querida Paula Maria, que sem saber que eu estava vivendo um dos piores dias dessa confusão toda, deu um jeito de me fazer desfrutar de doces de padaria aqui na Suécia. Muitas vezes são gestos assim que salvam o dia. E o que é viver se não atravessar um dia depois do outro?
As companhias são nossos botes salva-vidas.
Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Estamos colaborando aqui de Pedro Leopoldo, Minas Gerais como podemos. Como curiosidade, A Cidade e a Cidade foi adaptada em uma mini série primorosa britanica. Vale a pena assistir
Compraria muito ❤️